Maria José Morgado - Naquela época eu estava no tribunal da Boa-Hora, ocupava um gabinete escuro no rés do chão, perdido ao fundo de um corredor frio. Trabalhava de porta aberta dado o vaivém de gente e de processos, o constante bulício de um tribunal de julgamento atafulhado de processos e de problemas.
Um dia alguém mais estranho ao meio pediu-me para entrar avançando de olhos no chão, urgência marcada nas mãos trémulas. Um homem mal vestido, magro, precocemente envelhecido, tirando do bolso um amontoado de papéis amachucados.
Começou então a explicar-me que vinha por causa de me dar o tempo de prisão completo sofrido pelo recluso António X. O recluso cumpria agora doze anos de prisão resultantes do cúmulo jurídico de penas de prisão aplicadas em sete julgamentos anteriores e com muitos processos agregados. O tribunal da Boa-Hora tinha que fazer a contagem da pena, enviá-la ao tribunal de Execução de Penas. Vários meses após a última condenação ninguém conseguia cumprir esta parte — ou seja, eu não conseguia e estava aflita.
Ouvi-o fervorosamente a debitar um a um os dias de liberdade a descontar no meio dos longos ou médios períodos de prisão, tudo datas minuciosas de anos, dias, meses à medida que desfolhava cada um daqueles papéis. Um calendário com o rigor que faltava nos processos, porque havia registos omissos difíceis de apurar naquela confusão burocrática. Eu somava quatro meses na aflição dos ofícios para lá e para cá, já tinha recorrido aos serviços prisionais inclusive, mas continuava a faltar-me o apuramento de alguns bocados de tempo de prisão ou de liberdade essenciais, no meio da infindável troca de informação em papel entre dez tribunais. Havia urgência máxima porque se estava no limite do prazo para a liberdade condicional, o recluso queria ir passar o Natal a casa e eu não acertava no cômputo da pena única, desgraçadamente.
Enquanto o ouvia e tomava nota de tudo com o alívio da questão resolvida, matutava em quem seria o sábio visitante, talvez familiar ou amigo do recluso, sabia lá, o importante era ter finalmente tudo. Quando ele acabou, verificada a credibilidade das datas todas, perguntei-lhe baixinho, quase a medo não fosse tratar-se de alguma alucinação: "E o senhor afinal quem é?"
"Sou o recluso. Pedi uma saída precária para vir aqui explicar tudo à sedôtora." Fiquei espantada. Admirei-me que o chão não tremesse, que os montes de processos em cima da secretária não tivessem desabado e só consegui dizer-lhe: "Oh homem vá depressa para o estabelecimento prisional, não se perca pelo caminho, está tudo esclarecido, há de ir passar o Natal a casa."
Ainda hoje recordo aquela cumplicidade virtuosa entre um recluso e o Ministério Público. Ensina-me a importância de fazer justiça para as pessoas, de perceber o que é a nossa função repressiva. Mantém-me o trauma do imbróglio das bases de dados do nosso sistema penal, assunto sempre desfocado no modelo das chamadas grandes reformas. É mais garantido continuar a trabalhar de porta aberta.
Maria José Morgado | Expresso | 28-12-2013
Comentários (9)
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Lágrimas de crocodilo
...
É claro que o Francisco do Torrão descobre o filão certo...
...
...
E qu' é do apito?
Há realmente quem tudo faça para «aparecer»... Abrindo ou fechando as portas... como mais convier...
Mas justiça?!? Ora... Isso que importa?
E poesias!
A porta aberta do artigo do Expresso é apenas outro género de poesia...
Esquisito
ou talvez, interessante...
como o relato de uma situação ocorrida,
com o seu quê de insólito...
e talvez, só compreensível, em tal contexto, por quem a viveu e lhe dizia respeito...
e que teve o seu quê de surpresa para quem estava enredado
no fazer andar os processos entrados e acumulados...
para quem a caneta, esferográfica, telefone, máquina de calcular e os códigos
são os instrumentos imediatos que tem à mão
para resolver o que sabe e pode,
caso a caso,
e para os quais o sistema não dá,
tantas vezes,
a informação ou os elementos que necessita ...,
neste caso,
o da ocorrência relatada,
é curioso constatar,
tal como um espelho partido no chão e ao sol...
suscite curiosas irradiações, as mais incríveis...
não sobre o ato da pessoa...
mas sobre a porta,
a magistrada,
e ache até poesia infantil lembrada
nos cacos de uma história ...
real, de tantas que cada um conhece e podia contar...
diferentes histórias,
outras situações...mas iguais no foco central,
a pessoa humana e o seu drama...