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REVISTA DE 2013

Os magistrados e as pressões sobre o Tribunal Constitucional

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Paulo Rangel - Como aceitar que juízes e magistrados do Ministério Público expressem publicamente um juízo sobre essa questão?

1. Já não sei quantas vezes escrevi aqui, neste mesmo espaço, que as decisões do Tribunal Constitucional e as suas linhas jurisprudenciais podem e devem ser discutidas na esfera pública. E que tanto podem ser discutidas as decisões já tomadas como as eventuais decisões a tomar, nada havendo de necessariamente censurável na feitura de prognose ou daquilo a que a politóloga alemã Christine Landfried ironicamente chamou a "astrologia constitucional". As decisões proferidas ou a proferir pela jurisdição constitucional são de tal modo importantes que, numa democracia, não se compreenderia que elas não fossem objecto de debate e de escrutínio público. De resto, nunca é de mais lembrar que a Constituição não é um condomínio fechado de magistrados, juristas em geral e actores políticos. A Constituição vem a ser uma ágora de referência de todos os cidadãos e, por conseguinte, tem de reconhecer-se a todos eles o direito e a capacidade de a interpretar e de formular opinião a respeito dos seus dizeres e opções.

2. Naturalmente, as coisas mudam de figura quando falamos dos outros poderes do Estado, designadamente do Governo ou do Presidente da República. Parece razoável que o Governo e os seus membros, em especial a propósito de legislação que tenham aprovado ou que tenham proposto ao Parlamento, usem de um dever de prudência, reserva e recato. A observância desta "discrição constitucional" em nada implica que o Governo não transmita ao Tribunal, pelos canais processuais próprios, a sua posição quanto à conformidade ou desconformidade à Constituição de qualquer acto normativo. E também não obsta a que, numa situação que repute de grave, esclareça o país e a opinião pública sobre as suas razões para sustentar a constitucionalidade de um diploma. Mas, como regra, deverá evitar o confronto institucional, para que não medre nenhuma suspeita ou labéu de tentativa de pressão sobre um poder cuja nota essencial vem a ser a independência.

3. Este final de semana, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público tomou posição quanto à Lei do Orçamento e à nova orgânica judiciária. E o mesmo fez, se bem que em termos ligeiramente mais brandos, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Pondo de lado, ao menos por hoje, as questões relativas à organização judiciária, não devem passar em claro as afirmações produzidas pelos respectivos presidentes, Rui Cardoso e Mouraz Lopes (na foto), dois notáveis magistrados. Ambos criticaram veementemente as supostas pressões que o Governo (e não só) tem vindo a fazer sobre o Tribunal Constitucional. Ambos consideraram que os cortes nos vencimentos e pensões de magistrados do Ministério Público e de juízes, previstos na proposta de Lei do Orçamento, violam clamorosamente a Constituição.

4. De há muito, também nestas páginas, que exprimi as maiores dúvidas quanto à admissibilidade e à conveniência de os juízes disporem de uma organização sindical. E, com argumentos menos robustos, fiz valer as mesmas dúvidas e resistências para o hemisfério dos magistrados do Ministério Público. Não parece curial que titulares de órgãos de soberania - e, bem assim, oficiais públicos directamente implicados na administração de uma função soberana - se possam organizar corporativamente numa lógica sindical. E que disponham, por exemplo, do direito à greve.

5. Ao mesmo tempo, em obra antiga e em artigo recente (PÚBLICO, 13 de Novembro de 2012), vim defender a ideia - altamente impopular - de que mexer no estatuto remuneratório e nas garantias sociais de juízes e magistrados é uma decisão perturbadora do princípio da independência judicial. E que, idealmente, estes titulares de funções soberanas deveriam estar protegidos contra essas variações de estatuto económicosocial. Algo que nada tem de inédito, pois está salvaguardado explicitamente pela velha Constituição americana (com extensão aos próprios benefícios sociais). É óbvio que um corte geral sobre toda a função pública e cargos políticos equiparados não visa, directa e intencionalmente, os magistrados enquanto tais e, portanto, não pretende atingir a sua independência. Em todo o caso, erra quem julga que a independência judicial é dissociável de um componente estatutário de vezo económico e social.

6. Feita esta longa declaração de interesses, importa perguntar se a defesa vigorosa de que a Lei do Orçamento é inconstitucional, por órgãos que representam a classe profissional dos juízes e do Ministério Público, não consubstancia, ela mesma, uma pressão inadmissível sobre o Tribunal Constitucional? Como aceitar que juízes e magistrados do Ministério Público - que podem, aliás, em casos concretos, ter de apreciar a questão da constitucionalidade de normas orçamentais - expressem publicamente um juízo sobre essa questão? Não impende também sobre eles um dever de recato e de reserva quanto à apreciação pública, política e jurídica de uma lei? Não são, pelo menos seis dos treze juízes do Tribunal Constitucional, juízes de carreira, porventura filiados na Associação Sindical? Que as organizações sindicais de magistrados denunciem aquilo que consideram atentados à independência de qualquer órgão jurisdicional parece tolerável. Coisa bem diversa, e deveras censurável, é que aproveitem o ensejo para, elas próprias, exercerem pressão em sentido contrário. O desabafo de um juiz ou de um corpo de juízes em face do Tribunal Constitucional não parece valer menos do que a palavra de um ministro ou de um dignitário internacional. Naturalmente, nada do que vem dito impede que, nos momentos e locais adequados (em audições no Parlamento, em pareceres solicitados ou em audiências com os membros do Governo), externem a sua posição jurídica, administrativa, política e corporativa sobre leis ou projectos de lei. Mas uma coisa é certa: mesmo vinda do poder judicial, uma pressão não deixa de ser pressão.

Faria Costa. A posição do provedor de Justiça contra o corte da bolsa aos estudantes universitários por dívida fiscal dos pais é um grito de equidade e coragem contra uma regra escandalosa e mesquinha. Governo. A triplicação de fundos europeus para a região de Lisboa e a defesa do spill over (investir em Lisboa favorece todo o país) mostram bem a sobrevivência da política de enriquecer a região mais rica.

Paulo Rangel | Público | 05-11-2013

Comentários (5)


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Credo! Não ia escrever, mas não consigo deixar de dizer isto:
Dr. Rui Rangel, pressão não é o Governo dizer que entende que a Proposta é constitucional - era o que mais faltava que entendesse ou dissesse o contrário.
Dr. Rui Rangel, pressão não é o Parlamento dizer que entende que a Lei que aprovar é constitucional - era o que mais faltava que entendesse ou dissesse o contrário.
Dr. Rui Rangel, pressão não é qualquer jurista ou profissional do direito manifestar o seu entendimento sobre a constitucionalidade de uma lei.
Pressão, Dr. Rui Rangel, é a chantagem, é dizer que ou e isto ou o caos. Isso é que é pressão.
Tome cuidado com as suas companhias e com o argumentário delas. Não queira descer ao mesmo simplismo argumentativo.

Nota do Administrador:
Conforme consta assinalado no texto do item, o Autor do artigo é o Exmp. Senhor Dr. Paulo Rangel, eurodeputado no Parlamento Europeu e não o Exmo. Senhor Dr. Rui Rangel, Juiz Desembargador na Relação de Lisboa
o.O , 05 Novembro 2013
...
Ops! Obrigado, Sr. Administrador. Vale tudo, com as devidas adaptações, menos o comentário final. Rectificação feita, com o pedido de desculpa ao Dr. Rui Rangel.
o.O , 05 Novembro 2013
...
Os juízes estão a ser atacados porque as forças políticas instaladas precisam de juízes passivos que se prestem a desempenhar o papel legitimador dos agravos, distorções e ilegitimidades que se querem fazer passar custe o que custar.

A única coisa que o juiz não pode fazer é vir a público falar do caso concreto que está julgando.

Mas o juiz também é um cidadão, e nessa qualidade não pode ser coibido de emitir opiniões ou lançar alertas sobre a constitucionalidade e legalidade de determinadas condutas políticas, quer o faça individualmente quer através das suas organizações representativas legalmente constituídas. Pelo menos assim deve ser enquanto a palavra “Estado de Direito Democrático” estiver escrita na Constituição da República.

Digamos mesmo que o juiz, enquanto membro do Poder Judiciário, não só pode como tem o dever institucional de intervir na sociedade com vista a moderar e controlar os excessos dos outros órgãos do poder político.
Maria do Ó , 05 Novembro 2013
...
Será que a tomada de força, a cargo institucional e politicamente correcto ao que diz respeito, concerne, exigir, pragmatizar e incorporar determinada posição radical ao profissionalismo e empenho catedrático do Juiz?
Assim sendo, tomaremos pela devida questão opcional o ataque ferozmente cerrado, artilhado e minuciosamente exacerbado por determinadas posições e fundamentalismos políticos, será que á luz da razão omni e "Ad Corpurius" temeremos e preservaremos tal circunstância?
A ver vamos, a douta simplista equação.
Árimedes , 05 Novembro 2013
...
Este texto é um "frete" do Dr. Paulo Rangel ao governo, que o deveria envergonhar.
Um eurodeputado não se devia prestar a fazer papéis de "boy".
Shame on you, Dr. Paulo Rangel.
FBC , 06 Novembro 2013

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