Por Dr. Francisco H. Neves. Sumário: Uma perspectiva jurídica: · A «indexação» ao Presidente da República, · O imperativo «só»; · O «sexénio» dos juízes; · Os «barões e senadores»; · É tempo constitucional; · São leis da República
1.
A propósito das próximas eleições autárquicas está instalada a discussão nos meios políticos e jurídicos, com expressão na comunicação social, sobre a questão de saber se presidentes de câmara cessantes, com três mandatos consecutivos na mesma câmara, podem agora concorrer imediatamente a um quarto mandato em outra câmara. Os casos são conhecidos, públicos e notórios.
Ora o regime da limitação de mandatos políticos existe quanto aos cargos de:
· Presidente da República,
· Presidentes de câmara,
· Presidentes de junta de freguesia.
As normas jurídicas aplicáveis a cada caso são estas:
Presidente da República
(Art.º 123º da Constituição)
1. «Não é admitida a reeleição para um terceiro mandato consecutivo, nem durante o quinquénio imediatamente subsequente ao termo do segundo mandato consecutivo.
2. Se o Presidente da Republica renunciar ao cargo, não poderá candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quinquénio imediatamente subsequente à renúncia».
Presidentes de câmara e presidentes de junta de freguesia
(Artº 1º Lei nº 46/2005 de 29 de Agosto)
1. «O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos (...)
2. O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia, depois de concluídos os mandatos referidos no número anterior, não podem assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido.
3. No caso de renúncia ao mandato, os titulares dos órgãos referidos nos números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia».
Como existe uma só república a lei fala em «Presidente da Republica» e não em «Presidente de Republica». Mas como existem várias câmaras e várias juntas de freguesia a lei fala em «presidentes de camara» e «presidentes de junta».
É o princípio da abstracção (leis gerais e abstractas) - (Art.º 18º/3 CRP).
Quando hoje se diz vg o «Presidente da Câmara de Lisboa» está implicitamente a dizer-se «O presidente de câmara da câmara de Lisboa.
«Presidente de câmara» aponta para a pessoalidade.
«Presidente da câmara» aponta para a localidade.
Cotejando as normas jurídicas supra, verifica-se que a lei da limitação de mandatos dos presidentes de câmara vem algo decalcada da lei da limitação de mandatos do Presidente da República, na qual se inspira e segue de perto. O «desvalor» subjacente à limitação de mandatos do Presidente da República está também presente, proporcionalmente, na limitação de mandatos dos presidentes de câmara. Nomeadamente a «pessoalização»; quanto ao Presidente da República, em pirâmide a nível nacional, e, quanto aos presidentes de câmara, no âmbito do seu município, mas com extensão longa manus nas acções intermunicipais, distritais e federações nacionais.
Face a conexão existente entre as duas leis (presidencial e autárquica) terá de haver um critério uniforme de interpretação. Não se pode certamente adoptar o principio de que a final dos seus dois mandatos (dez anos) os presidentes da república se presumem todos «pecadores» para serem apeados e que a final dos seus três mandatos (doze anos) os presidentes de câmara se presumem todos «santos» para serem reconduzidos.
2.
De harmonia com o preceituado no instituto da limitação de mandatos autárquicos (Lei 46/2005), o limite de exercício das funções de presidente de câmara atinge-se, numa primeira fase, verificados os seguintes pressupostos:
· A pessoalidade – o cidadão eleito presidente de câmara
· O número – que cumpra três mandatos
· O tempo – consecutivos
· O espaço – no universo de câmaras municipais
· O imperativo - «só» .
O mandato anda ligado à pessoalidade, à personalidade de quem o exerce, integra-se na sua esfera jurídica, no seu curriculum.
Três é o número limite de mandatos que o presidente da câmara pode exercer, se no tempo forem consecutivos, isto é, todos seguidos, sucessivos, sem interpolações.
Quanto ao espaço a lei não estabelece qualquer critério, vale a liberdade de opção no universo de câmaras municipais. Assim os três mandatos consecutivos tanto podem ser cumpridos em três câmaras diferentes (um mandato em cada câmara), como em duas câmaras diferentes (dois mandatos numa e um noutra), como numa só câmara (os três mandatos seguidos na mesma câmara). É indiferente o espaço.
Relevante é o tempo e o imperativo «só» da Lei 46/2005: «Os presidentes de câmara só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos...».
Sendo que este «só» é um «só» imperativo sem qualquer excepção.
A limitação está nas pessoas e não nos lugares. Aliás, os eleitores também votam nos candidatos para as câmaras e não votam nas câmaras para os candidatos.
(Paralelo). Um aluno poder-se-á matricular durante os três anos do seu Bacharelato em Direito em uma, duas ou três universidades públicas. Sendo que relevante para o curriculum é a conclusão do curso, preste ele as provas em uma, duas ou três universidades. Mas uma vez concluído, já não poderá voltar a inscrever-se no 1º ano.
E poderá até ter de aguardar algum tempo por vaga no 4º ano...
3.
Para que um presidente de câmara cessante tivesse agora o universo de câmaras disponível à eleição para um quarto mandato sucessivo, com a excepção única daquela câmara onde acaba de cumprir os três mandatos sucessivos anteriores, seria necessário que a Lei 46/2005 dispusesse de uma norma algo semelhante àquela do antigo «sexénio» dos juízes, que impedia estes de permanecer no mesmo lugar por mais de seis anos. Rezava assim essa norma estatutária da judicatura:
«Os juízes de direito não podem permanecer no mesmo tribunal, juízo ou círculo judicial, conforme os casos, por mais de seis anos».(Art.º 7º da Lei n.º 85/77 de 13/12, vigente até 1985).
Mas nenhuma norma nesse sentido existe na lei autárquica nº 46/2005 («ainda que imperfeitamente expresso», (Artº 9º/2 CC)). Pelo contrário, enquanto a regra do «sexénio» dos juízes fazia o nexo-limite com o lugar (nexo-pessoa-lugar), a lei autárquica faz o nexo-limite com o tempo (nexo-pessoa-tempo). Tal, aliás, como o nexo-limite do Presidente da República.
4.
E, cogitando, afigura-se uma medida legislativa acertada. É que uma norma nas autarquias algo semelhante ao «sexénio» dos juízes (que no caso seria «duodecénio», três mandatos) poderia vir a revelar sérias fragilidades. Seria é claro uma norma geral e abstracta, aplicável a grandes e pequenos, mas que na prática seria susceptível de ser contornada pelos grandes («barões» e «senadores») em desfavor dos pequenos. Nomeadamente,
· A um «senador», esgotados os três mandatos sucessivos, logo o partido o indicaria para outro município, para exercer mais um, dois ou três mandatos seguidos.
· Surgiria por aí uma espécie de «presidências bicéfalas» em que, na mesma câmara, dois vereadores, mandato a mandato, se revezavam entre si na presidência da câmara ad eternum.
· Em dois ou três bastiões vizinhos, a respectiva força partidária colocaria «senadores» seus nas presidências das câmaras que, mandato a mandato ou de dois em dois mandatos faria rodar, entre si, sempre os mesmos.
E, sem nunca violar a lei, dentro de poucos anos teríamos o país «recheado» de outros «dinossauros», com os inconvenientes constitucionais daí resultantes. Bem andou o legislador com o imperativo «só» de natureza pessoal-temporal.
5.
Alegam os «dinossauros» e seus apoiantes que o impedimento de serem agora eleitos para um quarto mandato consecutivo constitui uma restrição, uma violação da cidadania, uma violação dos seus direitos, liberdades e garantias constitucionais.
Homessa!
Mas como assim dizer se eles já exerceram livre e plenamente esses direitos constitucionais durante um, dois e três mandatos sucessivos, ao longo de quatro, oito, doze anos, enquanto outros cidadãos interessados - «filhos» da mesma Constituição - aguardam ainda na fila pela oportunidade de poder vir a exercer um primeiro mandato?
Com o resultado em 3-0 é tempo de mudar o jogo.
O Presidente da República muda aos 2-0.
Agora é tempo constitucional da renovação. Mas mais do que isso, é sobretudo tempo constitucional da livre oportunidade de outros cidadãos poderem «igualmente» entrar no universo autárquico, vir a ser eleitos e a participar, activamente, na vida municipal. ( Art.º 12º, 13º, 48º, 49º, 109º, 118º CRP).
Um quarto mandato ora autorizado corresponderia um primeiro mandato não iniciado.
Os «dinossauros» de hoje também já foram aspirantes ontem. De resto a limitação de mandatos nem é absoluta visto que, decorrido um quadriénio, o presidente ora cessante pode voltar a ser eleito presidente de qualquer câmara.
E mesmo hoje a bondade da lei 46/2005 até admite que o presidente cessante faça a «ponte» do quadriénio como vereador, eleito lá no meio da lista e, nessa qualidade, continue com os principais pelouros do município e a representar a Câmara, em «substituição do presidente». Só não podendo, no limite, «assumir aquelas funções» de presidente, em caso de incapacidade ou renúncia do presidente eleito.
6.
No campo político os senhores deputados têm o poder-dever de fazer as leis necessárias à vida dos cidadãos que os elegeram. Mas uma vez aprovadas e publicadas no jornal oficial, tornam-se leis da República, que a todos vinculam, inclusive quem as votou e aprovou. Entram no campo jurídico, sujeitas à seriedade das regras legais de interpretação jurídica. Presumindo-se que o legislador consagrou a solução mais acertada, (Art.º 9º/3 CC). E a lei da limitação dos mandatos autárquicos (46/2005), algo «indexada» à lei da limitação de mandatos do Presidente da República consagra, efectivamente, nos termos expostos, uma solução adequada. A seriedade existente no cumprimento do «quinquénio» intercalar do Presidente da República, também deve existir no cumprimento do «quadriénio» intercalar dos presidentes de câmara. Afinal, estamos no mesmo Estado de Direito!.
Francisco H. Neves | Crónica da Fraga | 17-04-2013 (publicado com autorização)
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