Daniel Oliveira - Em 2011, José Sócrates avançou com o corte de 3,5% a 10% nos salários dos funcionários públicos acima de 1500 euros brutos. Muito a custo, o Tribunal Constitucional aprovou a medida. Avisando que apenas o fazia por duas razões: porque era transitória (na verdade é "transitória" desde então) e porque, sendo o valor mínimo de 1500 euros, isso era aceitável.Porque os cortes estavam "dentro dos limites do sacrifício que a transitoriedade e os montantes da redução ainda salvaguardam".
Em 2012, o TC voltou a recordar que a medida era transitória. No mesmo ano, o TC chumbou a suspensão dos dois subsídios. Mas numa solução um pouco estranha, a inconstitucionalidade determinada pelo TC não teve efeitos práticos.
Em 2013, o TC volta a aceitar a medida transitória dos cortes acima de 1500 euros, mas desta vez com um aviso ainda mais claro: "o decurso do tempo implica um acréscimo de exigência ao legislador no sentido de encontrar alternativas que evitem que, com o prolongamento, se torne claramente excessivo para quem o suporta", acrescentando que "o tratamento diferenciado dos trabalhadores do sector público não pode continuar a justificar-se pelo carácter mais eficaz das medidas de redução salarial". Em tribunal-constitucionalês isto quer dizer: a medida era transitória e o facto de ser fácil ir sacar dinheiro aos salários dos funcionários públicos não os pode transformar em mealheiro do governo. Para deixar tudo ainda mais claro, o TC chumbou de novo a suspensão dos subsídios mas desta vez obrigou o Estado a devolver o que, como os juízes já tinham dito, nem poderia ter sido retirado no ano anterior.
No Orçamento de Estado para 2014, aquilo para o qual o TC pedia que fossem encontradas alternativas é repetido. Mas em muito pior. Em vez do limite inferior de 1500 euros, ele passa para 600 euros. Em vez do corte máximo de 10%, ele passa para 12%. Sendo muito menos progressivo do que os cortes anteriores, o valor máximo começa logo nos 2000 euros brutos, que passam de um corte de 3,5% para um corte 12%. O que afetava menos de metade dos funcionários públicos passa afetar 90%. Não é preciso ser bruxo para desconfiar que, depois de tudo o que disse e de todos os avisos que deixou, muito dificilmente os juízes do Constitucional deixarão passar esta medida. Ela é, mais ainda do já fora a repetição da suspensão dos dois subsídios, uma inacreditável provocação ao Tribunal Constitucional.
E é evidente que os juízes terão toda a razão em impedir estes cortes. A ver se nos entendemos: os funcionários públicos, que sofreram o mesmo agravamento fiscal sentido por nós todos, passaram a descontar mais para a ADSE (única medida com a qual concordo, por ser voluntária), sofreram o anterior corte até 10% e já tiveram a perda de dois subsídios em 2012. Com esta medida, o seu salário é ainda mais maltratado.
Pegando num exemplo que nem é dos piores, um funcionário público que recebesse 1600 euros limpos em 2010 vai receber 1350 euros limpos em 2014, isto já com um dos subsídios diluídos no salário. Perde 4500 euros por ano. É um ¼ do seu salário líquido. Não há, que eu saiba, nada de parecido em trabalhadores que façam parte do quadro de empresas e com salários semelhantes. E sabemos como estes também não têm sido poupados à rapina. Apesar do governo estar apostado em provar o contrário, os funcionários públicos são pessoas, não são sacos de pancada.
Mas ainda que se discordasse das decisões do Tribunal Constitucional, elas têm sido claras nesta matéria. E com um tribunal não se fazem negociações. Não se vai esticando a corda até ela rebentar. Cumprem-se as decisões e as recomendações e respeita-se a sua autoridade. Discorda-se, critica-se, barafusta-se. Mas cumpre-se.
Partindo do princípio que há uma coerência na interpretação que os juízes do TC fazem da Constituição da República (e só a sua interpretação é vinculativa), esta proposta vai ser chumbada. Partindo do princípio que o governo não pensa que os juízes mudarão de opinião por cansaço, o governo sabe que ela será chumbada. Ou então, o que é mais grave, acredita que a pressão política interna (que o governo tem exercido) e externa (que o governo tem permitido) fará os juízes desistir das suas funções: que são apenas e só fazer cumprir uma Constituição que resulta da vontade dos que foram eleitos pelo povo, que a escreveram e alteraram sete vezes. E nem os nossos parceiros internacionais, nem qualquer memorando com eles assinado se sobrepõem à lei fundamental do País. Nem aqui, nem em qualquer Estado de Direito.
A minha tese é outra: o governo não anda distraído nem é teimoso. Não se incomoda muito com a forte possibilidade desta e doutras medidas serem chumbadas. Quer, aliás, alimentar o mais que puder o conflito institucional com o Tribunal Constitucional. Para recentrar o debate na Constituição da República, e não no seu falhanço em todas as metas que se propôs cumprir (foi perturbante ver a ministra das Finanças falar dos sinais de retoma enquanto a desgraça dos números da dívida, do défice e do desemprego passavam em rodapé na televisão). Para encontrar nas "forças do bloqueio" - a Constituição e o Tribunal Constitucional - os bodes expiatórios da tragédia para onde nos está a levar. Para provar que é a nossa Constituição e não numa receita absurda, inviável e fanática que nos afunda cada vez mais nesta crise. E que é ela que impede a purificação do Estado e da economia.
Não faltam jovens e velhos comentadores a fazerem coro com o governo neste discurso vigoroso contra as forças "reacionárias" que impedem o nosso progresso. A retórica revolucionária começa sempre por atacar as instituições que travam a queda de um regime decadente. Neste caso, são instituições passadistas, como o Tribunal Constitucional, que continuam a suportar os focos antirevolucionários. Mas graças ao empenho desta vanguarda esclarecida que ilumina os nossos espíritos arcaicos, é sobre as ruínas desta democracia feita de direitos adquiridos que nascerá um homem novo. Livre do Estado e das dependências que ele alimenta. Só falta a tomada do Palácio de Inverno. É uma questão de tempo. Porque, como todas as ideologias totalitárias, o "liberalismo científico" sabe que nada pode travar a marcha da história. Que inevitavelmente esmagará as forças da reação. A começar, claro, pelos esclerosados juízes do Tribunal Constitucional.
Daniel Oliveira | Expresso | 16-10-2013
Comentários (7)
Exibir/Esconder comentários
"I have a dream"
Para que alguns visitantes e comentadores desta Revista não pensem que me atiro a tudo o que Daniel Oliveira escreve e pensa (isto, dadas as críticas que tenha feito a posições tomadas por Daniel Oliveira, ao mesmo tempo que lhe tenho elogiado outras, como por ex. a sua opinião sobre a ADSE, no que foi, a meu ver, injustamente criticado por alguns compagnons de route), tenho a dizer:
Excelente texto de Daniel Oliveira!
Apenas um ponto: o TC não dá recomendações. Quero crer que nunca deu, não dá, e espero que nunca dê. Por isso não têm que ser seguidas quaisquer "recomendações" vindas deste tribunal.
Quanto à nossa Constituição, nunca vi nela um obstáculo ao progresso económico, excepto num ponto (quem estiver com pressa pode ir já para o último parágrafo).
Pode-se levar um País à falência de várias maneiras. Para simplificar, pensemos em duas, opostas e extremas:
Com uma política de austeridade excessiva, destruidora das estruturas e das relações económicas; com uma política de endividamento excessivo. (Outras haverá, mas, para simplificação, pensemos só nestas duas.)
Com a primeira parece que, por razões políticas, politiqueiras (leia-se: eleitoralistas), sociológicas ou outras que estarão a escapar-me, as pessoas com legitimidade para pedir ao TC a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas das quais deriva a excessiva e nefasta austeridade nunca terão falta de energia para requererem essa mesma apreciação. É caso para dizer, com genuína alegria: ainda bem!
Já com o segundo tipo de política (endividamento excessivo), por razões que, essas sim, me escapam com toda a certeza, notei sempre haver falta de gente com massa cinzenta para pedir ao TC a apreciação da constitucionalidade das normas capazes de levar um país à banca-rota por autorizarem décadas ininterruptas de orçamentos criminosamente deficitários. Por que será? Alguma alma fará a caridade de m'o explicar?
(Sabem, às vezes sonho com uma revisão constitucional que viesse alargar a legitimidade para pedir ao TC a fiscalização preventiva de certas normas. Alguém tem este sonho também, ou sou só eu? Estão todos contentes com a quantidade - e a qualidade, escreva-se assim muito de passagem, quase em letras invisíveis - de pessoal com legitimidade para pôr em marcha um acórdão do TC preventivamente apreciador da constitucionalidade de uma norma? Eu não estou. Acho que é uma tarefa que está atribuída a muito poucos. Muito poucos mesmo. E altamente condicionados. É melhor é não dizer por quê ou por quem.)
profecias...
...
Porque o TC e o TCon. Não fiscalizam as PPP e os Ajustes directos? Não está tudo intimamente relacionado?
É sempre o zé povinho a apanhar...
Digo-lhe o TC está ultrapassado como toda a nossa política...Em Bancarrota já nós estamos sem chumbos ou aprovações do TC, e digo-lhe mais, o impasse que o mesmo nos cria não beneficiam em nada este país...
...
As duas notícias são estas:
http://www.inverbis.pt/2013/po...aumentados
http://www.inverbis.pt/2013/po...m-dobro-pm
Tenho a dizer que nenhuma delas foi por mim sugerida ao Sr. Administrador para publicação.
Limito-me a reconhecer que há coincidências engraçadas e que me fazem o dia...
Acham que o dinheiro para pagar a esta gente vem de onde? Do que o País produz?
Não, meus caros e minhas caras. Vem de fora. Vem dos "mercados".
Daqueles aos quais Teixeira dos Santos, Vítor Gaspar e agora Luísa Albuquerque querem sempre ir buscar qualquer coisa. Daqueles a que vamos para "vender dívida" (expressão engraçada cunhada por parolos de intelectualidade indigente, iguais aos que falam em "crescimento negativo", "capitais próprios negativos" e outras saloiadas).
É - entre outras coisas igualmente obscenas - para poder pagar a esta gente referida nas notícias supra que "Portugal vai aos mercados". Ainda há uns dias fomos aos mercados. Fazer o quê? Ora, endividarmo-nos em mais 1500 milhões de euros. 1500 milhões de euros! Comparado com os 80000 milhões de euros que a troika nos emprestou, são tremoços, não é? Ou amendoins...
Claro que as normas que permitem isto nunca serão inconstitucionais. Neste País, normas que permitam o mais irresponsável endividamento em que é possível pensar nunca serão declaradas inconstitucionais pelo TC. Não porque o TC não o pudesse fazer, mas porque ninguém pede ao TC para o fazer. E assim iremos, de leilão em leilão, de resgate em resgate, até já não haver nada para leiloar ou resgatar.
...
...
...
Venha o 2.º Resgate...