O Estado português celebrou um memorando de entendimento sobre as condicionantes da política económica com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, a famosa troika. Este acordo permite-nos obter transferências financeiras temporárias, mas, além da sua devolução e do pagamento dos respetivos juros, impõe-nos ainda, designadamente, diversas medidas de consolidação orçamental e de reforma do Estado. Os acordos são para cumprir!
Em 2008, com a Lei 12-A/2008, de 27 de fevereiro, procedeu-se a uma alteração profunda da relação de emprego público, aproximando-o do regime privado do contrato individual de trabalho. Para que estas mudanças fossem aplicadas à quase generalidade da função pública, foi necessário salvaguardar, aos funcionários públicos existentes à data, a aplicação dos regimes de cessação da relação jurídica de emprego público, de reorganização de serviços e de colocação em situação de mobilidade especial próprios do vínculo de nomeação pública. Os acordos são para cumprir!
Por dúvidas quanto à constitucionalidade de algumas normas do decreto n.º 177/XII da Assembleia da República, o Presidente da República solicitou a fiscalização preventiva da constitucionalidade das mesmas e o Tribunal Constitucional (TC), em acórdão do passado dia 29 de agosto, veio, por unanimidade numa das questões e por quase unanimidade noutra, confirmar as suspeitas do Presidente da República. Eu li o acórdão.
Neste acórdão, o Tribunal Constitucional considera que aquele decreto viola o princípio da confiança ao revogar-se a cláusula de salvaguarda acima referida, retirando-se àqueles trabalhadores a garantia que lhes foi dada, há apenas cinco anos, para que as restantes aproximações ao regime do contrato individual de trabalho fossem aprovadas. O TC decidiu por unanimidade e eu concordo com a decisão.
O Tribunal Constitucional considerou ainda inconstitucional, por violação do princípio da proibição do despedimento sem justa causa, consagrado no artigo 53.º da Constituição, as normas que, por aplicação conjunta, permitiam o despedimento por motivos tais como 1) a redução do orçamento do órgão ou serviço decorrente de diminuição de transferências do Orçamento do Estado ou de receitas próprias ou 2) a necessidade de requalificação dos respetivos trabalhadores para a sua adequação às atribuições ou objetivos definidos e de cumprimento da estratégia estabelecida. Aqui, a unanimidade apenas conheceu uma exceção, e, de novo, tendo a concordar com a decisão. A amplitude e a discricionariedade é tal, nesta formulação, que ultrapassa aquela que é permitida na fundamentação da justa causa de despedimento no sector privado. Bastaria reduzir as dotações orçamentais do serviço, despedir e, posteriormente, noutro ano, voltar a aumentar a dotação do serviço e a tarefa era cumprida sem violação da proibição da violação de justa causa de despedimento.
Então, em que ficamos? Se, por um lado, importa reduzir a despesa pública e o peso do Estado, e sabendo-se que qualquer redução material terá de ser efetuada ao nível dos salários da função pública, prestações sociais e juros e, por outro, as medidas encontradas vão sendo "chumbadas" por inconstitucionalidade, como resolver esta quadratura do círculo? Talvez com bom senso, diálogo e conhecimento dos temas. Senão, vejamos: o Tribunal Constitucional não considera, afirmando, aliás, expressamente o oposto, que a vitalicidade do vínculo laboral público encontra assento constitucional. Assim, é possível, constitucionalmente, efetuar a cessação do vínculo laboral com o Estado, mesmo, creio, para os funcionários públicos existentes em 2008. A decisão é, no meu entender, um convite a que se especifique, delimite, retirando discricionariedade, os casos em que aquela cessação é possível, porque o é, constitucionalmente.
Faltou esse diálogo, atribuindo-se, e aqui são culpados Governo e oposição, ao Tribunal Constitucional o papel de único opositor efetivo ao Governo, papel esse que não revejo no texto do acórdão e que, estou certo, não é pretendido por aquele órgão de soberania. Mas, num país mais preocupado com a discussão à volta dos sucessivos mandatos de autarcas e adormecido em paupérrimos debates parlamentares de estratégia puramente partidária, é mais fácil entrincheirar o Tribunal Constitucional nas fileiras da oposição do que entender as suas decisões. Acordem!
Miguel Lenódias Rocha | Diário de Notícias | 08-09-2013
Comentários (9)
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Estamos tramados com o Tó Zé.
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Carissímo Mendes de Bragança, está cheio de sorte, pois para grande alívio o (in)Seguro tem guia de marcha estabelecida para o início do ano 2014, cedendo o seu lugar a António Costa.
O que é uma má notícia para o PSD (o CDS já não conta para este campeonato), que olhando para as actuais sondagens (nunca um líder teve tanta oportunidade para cavar um fosso nas sondagens, e até isso tem desbaratado), ainda sonharia com um milagre nas próximas eleições legislativas.
Mas verdade se diga que não sei se em 2014 ainda teremos este PM, pois se até o seu padrinho já o contesta, não sei mesmo se conseguirá ir muito além. Tem a palavra o resultado das próximas autárquicas.
Mas como disse Pacheco Pereira no espantoso artigo que pode ler nesta Revista, os acordos são para cumprir, independentemente dos seus destinatários.
A menos que eseja economista, só não entendi a afirmação que o Estado só pode cortar nos salários. Na verdade e como bem sabe, só os economistas é que olham para o mapa das despesas e quando chega a hora de cortar, ficam enebriados pela coluna dos salários. Sabe-se lá porquê.
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http://www.youtube.com/embed/lNt7zc6ouco
Opinião de Vital Moreira
Publicado por Vital Moreira
O Tribunal Constitucional decidiu bem quando considerou que o regime de despedimento da função pública ia contra a garantia constitucional da proibição de despedimento sem justa causa, ponto essencial da "constituição laboral" da CRP. Mas já não assim quando acrescenta que também foi violado o "princípio da protecção da confiança" quanto à possibilidade de despedimento de funcionários recrutados quando a lei não admitia o seu despedimento.
Tradicionalmente, a relação de emprego na função pública era uma relação de direito administrativo, sem base contratual, moldada directamente pela lei, não havendo possibilidade legal de despedimentos (salvo como sanção diciplinar). Todavia, não sendo essa proibição de despedimento constitucionalmente imposta, não se vê por que é que a lei não pode ser alterada, de forma a permitir o despedimento (justificado) de quem antes não podia ser despedido. Não pode haver "direitos adquiridos" nesta matéria que prevaleçam contra interesse público imperioso, como tal definido pelo legítimo poder político,como o de reduzir o peso orçamental do pessoal no setor público. Invocar o "princípio da tutela da confiança" -- que nem sequer está explicitamente enunciado na Constituição, sendo uma dedução doutrinal e jurisprudencial do princípio do Estado de direito -- para proibir em aboluto o despedimento dos funcionários recrutados sob aquele regime afigura-se assaz excessivo. Uma decisão desta natureza precisa de uma base constitucional mais sólida do que o evasivo "princípio da tutela da confiança". E cria uma discriminação entre os funcionários antigos, que continuam a não poder ser despedidos (mesmo havendo motivo justificado), e os mais recentes, que já podem sê-lo.
Adenda
Na generosa concepção do TC, a "tutela da confiança" também protege as demais regalias legais de que tradicionalmente gozavam os funcionários públicos, como a menor duração da jornada de trabalho, a maior duração das férias, o regime de baixas por doença muito mais favorável, etc., sem esquecer algumas que já foram alteradas, como a idade da reforma e o cálculo das pensões de reforma? Será que o Estado só pode alinhar essas condições com o sector privado em relação aos novos trabalhadores da função pública, não em relação aos antigos que supostamente têm o "staus quo" protegido pela "tutela da confiança"? E será que o mesmo raciocínio se aplica a outras regalias legais semelhantes, como por exemplo o regime especial de "jubilação" dos juízes (ou das pensões dos juízes do Tribunal Constitucional), que por isso só poderia ser revisto em relação aos futuros juízes, não aos actuais?
http://causa-nossa.blogspot.pt...cesso.html
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Não deixa de ser curioso o nome do blog, nem mais nem menos que "Cosa Nostra", o qual é uma conhecida organização italiana.
E se podia ter sido mais feliz na escolha do nome, também o poderia ser no comentário, sobretudo se reflectisse antes de o fazer.
Ou será que no futuro os funcionários públicos podem ser contratados pessoal e directamente pelos dirigentes, em vez de concorrerem ao lugar, sujeitando-se a provas de conhecimento? Será que vão poder a passar a não pagar, ou pagar com desconto os serviços que necessitem, prestados pelo Estado, já que no sector privado uns beneficiam do preço de custo do produto, outros até lhes oferecem esses produtos, outros ainda beneficiam de taxas de juro e empréstimos garantidos. quando deles necessitam? Será que vão passar a estar obrigados a respeitar os deveres dos privados, e só esses, em vez das obrigações que lhes são impostas e que são bem mais gravosas? Será que vão poder ter mais do que um emprego, como acontece com os privados? Será que vão poder passar a beneficiar de reforma, independentemente dos anos que descontaram? Será que vão poder beneficiar da indemnização por despedimento sem justa causa, e carta para o fundo de desemprego, podendo ainda concorrer livremente para outro lugar, como acontece com o sector privado? Será que vai ser eliminado das decisões judiciais "a especial obrigação de comportamento sem mácula, e o exemplo" que é exclusivo dos funcionários públicos? Será que no futuro os funcionários vão passar a contar com prémios na Páscoa e no Natal, oferecidos pelos dirigentes, como acontece com os privados?
Finalmente, será que os direitos adquiridos são um exclusivo dos privados?
E muito mais há para dizer. Ficam só as mais notórias.
O "privilégio" da impossibilidade de despedimento sem justa causa dos funcionários públicos, não é um privilégio pessoal, mas funcional, porque visa proteger o Estado da lógica privada, para quem o interesse é diferente do interesse público, evitando que amizades ou interesses menos claros pemitam que um funcionário que exige um ónus possa ser afastado para que o interesse provado prevaleça, mas também num acto de vingança pela exigência. E ouvi tantas ameaças desse tipo em serviço! Em regra, a queixa era o mais frequente, mas casos houve onde senti o peso da ameaça e me foi recomendado para ter cuidado, isto é, para não cumprir as minhas obrigações. Já pensaram se num processo em que estão envolvidos, se o outro interveniente ameaçasse o(s) Magistrados, para que tomassem a decisão de acordo com a sua vontade, se não achariam que se justificava uma proteção aos Magistrados? Entendam de uma vez por todas: não há privilégio pessoal, mas sim funcional, o que faz toda a diferença.
Apesar de não parecer, Portugal ainda é um Estado de Direito, não está entregue à lei da selva.
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Só no dia em que as reformas forem cortadas, não por decreto, mas por não haver dinheiro, é que a velhada vai ter coragem para liquidar as pensões pornográficas dos juízes do Tribunal Constitucional e as subvenções vitalícias dos políticos. É preciso que uma cambada de tenentes-coronéis e daí para cima não receba o cheque durante 3 meses seguidos para pôr isto na ordem. É para lá que vamos. Mas é pena que as pessoas reajam não por princípios éticos, mas por falta do dinheiro.
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Se reler o que escrevi, não encontra em nenhum lado a referência a dois regimes, antes trato os funcionários públicos como um todo. Nunca referi que aceito o despedimento de uns, e não de outros, antes frisei que o despedimento é uma meio de defesa do Estado das ameaças privadas. Afinal, quem os diferencia é o meu Caro, o que lamento, mas não estranho, ou não tivesse sido altamente prejudicado por Trindade e companhia, os reis dos sindicatos da administração pública, e que tem a arrogância e a petulância de chamar traidores aos outros. De Avoilas e quejandos tenho a minha conta, e quero-os bem longe da minha porta. Afinal, também não estranho, ou não andasse o PC sempre de braço dado com o PSD e o CDS, para combater o PS, porque bem vistas as coisas, o grande inimigo do PC e do BE é o PS, não é o PSD e o CDS, como bem vimos no acto que antecedeu a chegada ao poder do PSD.
Se não sabíamos, ficamos todos a saber o que é ser de esquerda a sério, é andar de braço dado com o PSD e o CDS. Não é verdade? Serão esses os princípios éticos de que fala? Onde está a ética?
Será que está na Frente Sindical, que diz aos trabalhadores para não exigir os seus direitos, porque há outros que ainda não os têm? Pois, e assim vi uns passarem por mim a 100/hora e ficar no mesmo lugar.
Ou está distraído ou ainda não percebeu que a guerra é mesmo entre privado e público, estimulada pelo poder económico, que nela está interessado, ou não servissem os funcionários públicos de baliza para os direitos dos privados. Cortando aos funcionários públicos, mais fácil é depois cortar nos privados. Já vimos isso com os subsídios de férias e de Natal, ou não reparou?
Auto das castas dos funcionários públicos
Afinal, quem os diferencia é o meu Caro
Essa sua conclusão foi baseada em eu ter escrito «Porque os antigos têm a tutela do princípio da confiança»?
Não tem razão. Eu não critico os antigos terem a tutela do princípio da confiança. Quem critica isso é Vital Moreira. Eu critico a desigualdade que há entre uns e outros. E isso não faz de mim um diferenciador de funcionários públicos. A diferença não resulta da minha cabeça, resulta da lei: os FP mais velhos têm um determinado regime protector que os mais novos não têm. Quer discutir se isto é verdade ou mentira? Ou vai insinuar, contra o que eu escrevi, que está implícito no meu argumentário uma nivelação por baixo?
O meu Caro não diferencia os FP, e trata-os como um todo. Verdade. Mas sabe bem que a Lei não o faz. A Lei 12-A/2008. Era a esse aspecto que me referia. Essa lei é que veio começar o nivelamento por baixo. Há quem possa achar que o nivelamento por baixo começou com os FP a descontarem para a SS em 2000 e tal. Eu não vejo aí qualquer problema, mas estou disponível para outras leituras.
Fui reler, como pediu, o que escreveu. Encontrei um pedaço incompreensível:
O "privilégio" da impossibilidade de despedimento sem justa causa dos funcionários públicos, não é um privilégio pessoal, mas funcional, porque visa proteger o Estado da lógica privada, para quem o interesse é diferente do interesse público(sublinhados meus)
Não há "privilégio" nenhum para os funcionários públicos.
Art. 53 da Constituição:
(Segurança no emprego)
É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.
Isto aplica-se tanto aos trabalhadores funcionários públicos como aos trabalhadores privados. Se é um privilégio, é um privilégio de todos os trabalhadores. Então que sentido tem dizer que é estabelecido em nome do interesse do Estado, que é diferente - ninguém contesta - do interesse das empresas privadas? Não faz sentido nenhum, desculpe que lhe diga. Outras normas sim, como as relativas a certas obrigações dos funcionários públicos, e que lhes são exclusivamente aplicáveis, têm que ver com a essência das funções do Estado. Isto qualquer funcionário público deveria saber.
Ou será que no futuro os funcionários públicos podem ser contratados pessoal e directamente pelos dirigentes, em vez de concorrerem ao lugar, sujeitando-se a provas de conhecimento?
Com o apoio, ora por acção, ora por omissão, da direita e da "esquerda" parlamentar governativas (como se o PS fosse de esquerda, né?) a maior parte dos concursos públicos corresponde já há muito tempo a esse cenário apocalítico que descreveu. A sua expressão "será que no futuro" deixa-me assustado. A nomeação de boys e girls para o funcionalismo público faz-se pelos menos desde que Gil Vicente fazia representar o Auto da Lusitânia. Neste aspecto o futuro vai ser igual ao passado: viva a cunha no privado, viva a cunha na função pública. Em Portugal, mérito e capacidade são apreciados em casos excecionais.
Sobre tudo o que escreveu sobre sindicalismo e partidos, só tenho a dizer-lhe duas frases lapidares:
O amigo do meu amigo não é necessariamente meu amigo. O inimigo do meu inimigo não passa a ser, por causa disso, meu amigo.
Tudo isso me passa ao lado, limito-me a constatar que os associados do STE, da APRE e mais associações da mesma índole não têm uma palavra de solidariedade para com os funcionários públicos contratados depois da lei referida. Dizem que não se pode nivelar por baixo, mas veem os outros ser rebaixados e não dizem nada em prol deles. Essa é que é essa. Obviamente não quero pôr o Caro Orlando Teixeira ao nível desta gente, e desculpe se alguma impulsividade me levou a querer de si uma generosidade que só pode ser exigida às instituições, não às pessoas singulares. Peço-lhe por isso a sua compreensão para esta impulsividade.
Cumprimentos,
de esquerda