António Cluny - Em muitos casos, apenas o desespero e a apatia nos impedem de anunciar alto que o rei vai nu nos discursos irrealistas que, em sua sustentação, nos são quotidianamente feitos.
1. Vivemos num tempo irrealista. Pouco do que se diz e do que se propõe publicamente chega a ganhar foros de verdade verdadeira.
Tudo é um dito provisório, embora saibamos, com razões fundadas, que os autores de tais discursos preconizam a irreversibilidadc do que fazem acontecer.
Na verdade, poucos são hoje capazes de assumir frontalmente a "justiça" daquilo que, por sua obra, nos sucede. Mas, pior, em muitos casos apenas o desespero e a apatia nos impedem de anunciar alto que o rei vai nu a propósito dos discursos irrealistas que em sua sustentação nos são quotidianamente feitos.
2. Li, na semana passada, um artigo de Paulo Rangel, que, inteligentemente, nos habituou a escrever, com sinceridade e coragem, o que na realidade pensa.
Todavia, desta vez não deixei de descortinar nele algumas meias verdades, alguns propósitos mal esclarecidos. Não me refiro exactamente à sua eterna dúvida sobre a possibilidade de os magistrados se associarem para, entre outros fins democráticos, defenderem o estatuto constitucional que os rege e contrariarem as constantes contracções a que outros poderes e interesses sempre o querem submeter.
A ONU, o Conselho da Europa, os tribunais internacionais e a própria União Europeia já reconheceram esse direito e parece difícil, no contexto da Europa actual, retirá-lo.
O facto de entre nós tais associações assumirem a forma sindical e de os magistrados poderem fazer greve resulta apenas de o regime político português fundar a sua legitimidade numa revolução democrática recente.
A República Portuguesa foi por isso capaz de admitir, directamente e com verdade, aquilo com que outros, por envelhecidos e mais ambíguos, condescendem, no entanto, ao assumirem, na prática, uma realidade que somente ainda não legalizaram.
É o que sucede em Espanha e Itália, onde as associações de magistrados, mesmo sem estatuto sindical, têm convocado greves e onde os magistrados, de uma maneira muito mais óbvia, se agrupam em plataformas declaradamente político-partidárias, o que, como sabemos, não acontece entre nós. Note-se, contudo, que na Alemanha, cujo regime é fruto de uma ruptura radical com o totalitarismo nazi, tais questões nem se põem: os magistrados podem estar sindicalizados e, além disso, assumir, com verdade, a sua participação política e partidária.
3. O que me alertou foi a tese, apenas esboçada por Paulo Rangel, relativa às pressões dos sindicatos de magistrados sobre o Tribunal Constitucional.
Sejamos verdadeiros: defender publicamente - e sustentar em juízo - que uma dada lei é inconstitucional não pode ser considerada uma "pressão". Toda a discussão jurídica, nas instâncias ou fora delas, não passa disso mesmo: um confronto de teses arguidas por juristas e advogados, e sustentadas por magistrados em busca de uma verdade.
"Pressionar" não é pois manifestar opiniões jurídicas, públicas ou processuais, sobre um dado problema submetido a decisão judicial.
"Pressionar" é procurar condicionar a decisão de um tribunal, por via de uma argumentação exógena ao direito, a que ele não pode, portanto, atender inteiramente caso exija apreciar, com o rigor de um órgão independente, uma situação jurídica definida. "Pressionar" é insinuar que, se o Tribunal decidir de acordo com o direito e a lei, não há males que, por sua causa, não aconteçam aos cidadãos.
Ora, eis a verdade: não têm sido os sindicatos de magistrados a fazer isso.
António Cluny | ionline | 12-11-2013
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