António Cluny - A Justiça – devendo ser sempre imparcial na apreciação dos casos concretos – não pode ser neutra, nem sequer condescendente
1. O mundo mudou, mudou muito. Nem todas as «mudanças» são, no entanto, boas, pelo que não devem ser aceites como inevitáveis.
De pouco serve, pois, justificar nessa "mudança" os "inexoráveis males" que afligem a humanidade.
Se de "males" se trata, temos então a obrigação de tudo fazer para os afastar. E, se os queremos mesmo afastar, necessitamos compreender por que acontecem, quem os causa e que caminhos havemos de seguir para, de futuro, os evitar.
O que não podemos é, de modo algum, promover como boas as "mudanças do mundo" e, displicentemente, verberar os seus "males", mesmos os que lhes são inerentes, como se fossem fatais como o destino.
A isso chama-se desonestidade intelectual, demagogia!
2. Tive, recentemente, oportunidade de participar numa reflexão séria, organizada pelo Sindicato da Magistratura francês, sobre os problemas a que o "associativismo judiciário critico" deve hoje procurar dar resposta.
Mesmo que em forma de pergunta, o resultado óbvio de tal reflexão sobreveio rápido.
Como pode o "associativismo judiciário" responder à insatisfação dos cidadãos e dos próprios magistrados, sendo cada vez mais limitadas as soluções que a Justiça encontra – ou já nem isso – para contrariar a restrição dos direitos ou sua violação evidente? Tal questão contempla, necessariamente, várias outras.
Estará esta Justiça, mesmo que corrigidos os seus defeitos e insuficiências mais evidentes, em condições «políticas» de assegurar as funções constitucionais que lhe estão destinadas: garantir através da aplicação do Direito a realização dos direitos dos homens e dos cidadãos?
Quem quer, enfim, que ela seja, de facto, assegurada e quem não quer? E quem tem, realmente, possibilidades de permitir ou impedir que essa missão possa e deva ser cumprida? Ou, ainda; tem ainda esta Justiça razão de ser, em que medida, em função de quê e a favor de quem?
As respostas não são simples nem decididamente unívocas e, portanto, apenas puderam ser afloradas.
3. As perguntas – essas, sim – podem, ajudar, desde já, a esclarecer o sentido das "aflições" que se geram em torno do Direito e da Justiça.
Elas servem, também por isso, como instrumento útil de explicitação e crítica dos discursos sobre as consequências das decisões dos tribunais, no âmbito da discussão sobre a – agora prudentemente denominada – "política europeia da austeridade".
O guião para responder a tão importantes interrogações parece, afinal, simples: ou a sociedade continua maioritariamente a querer e a acreditar que todos têm direito a ter direitos, os mesmos direitos, e a usufruir de um sistema de Justiça independente e imparcial que os garanta, ou não.
Se a resposta for afirmativa, então a Justiça e os magistrados têm, necessariamente, de se posicionar perante qualquer mudança que teime em contrariar, de qualquer modo, os princípios de vida comum a que o Direito e a Constituição deram forma e tornaram vinculativos.
Neste aspecto, a Justiça – devendo ser sempre imparcial na apreciação dos casos concretos – não pode ser neutra, nem sequer condescendente.
4. É esta, portanto, a discussão que importa a um "associativismo judiciário" que se quer crítico e democrático. É já da conformidade da Justiça com os princípios do Direito e da Constituição que se trata.
Por isso, é também da legitimidade e do estatuto dos magistrados – que os devem fazer cumprir – que convém cuidar. Isto, para que não sejam travestidos em "acríticos" aplicadores de soluções, que já nada têm de jurídico.
António Cluny | ionline | 08-10-2013
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