O número de processos em tribunal contra médicos e outros profissionais de saúde por alegada negligência triplicou na última década com as acusações e condenações a chegarem a 21%, revela um estudo.
Em 2002, numa cirurgia digestiva realizada num hospital de Coimbra, a equipa médica esqueceu-se de uma pinça com 18 centímetros no interior do abdómen de uma mulher de 59 anos.
Como a doente mostrava desconforto e dores, seis meses depois voltou ao hospital, os médicos fizeram-lhe uma ecografia, mas o exame não acusou a pinça. A mulher voltou para casa, mas como as queixas se mantinham, um ano após a operação, regressou ao hospital para uma tomografla axial computorizada (TAC), que revelou um corpo estranho no abdómen. Foi novamente operada e retiraram-lhe a pinça. Adoente processou em tribunal a equipa médica. Um médico-cirurgião e duas enfermeiras foram acusados de terem violado as leis da arte médica e condenados a indemnizar a doente com 14 400 e 10 600 euros, respetivamente.
Este é um dos casos de negligência médica que nos últimos anos chegou aos tribunais, cada vez mais confrontados com estas queixas. Na última década, o número de processos contra profissionais de saúde terá disparado em Portugal, tendo triplicado entre 2001 e 2010. Um estudo efetuado pelo médico Gonçalo Castanheira revela que o Conselho Médico-Legal (CML) do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) - órgão composto por 20 médicos de referência de várias especialidades a quem os magistrados solicitam pareceres técnicos analisou,em todo o país, 33 casos em 2001 e 141 em 2010, um aumento de 3 27%. No entanto, e tendo como amostra o município de Coimbra, estudado pelo médico, "apenas em 21% dos casos existiu acusação ou condenação", revela.
A importância dos peritos
Para o médico, o aumento de queixas deve-se ao facto de haver "cada vez mais atos médicos, o que aumenta a probabilidade de erro". Além disso, "as pessoas estão cada vez mais inconformadas, recorrendo com muito mais frequência aos tribunais".
O Ministério da Justiça não contabiliza os casos de alegada negligência médica, daí que Castanheira tenha recorrido ao CML para o trabalho do Mestrado em Medicina Legal e Ciências Forenses da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Encontrou 1181 casos analisados pelo CML entre 2001 e 2010.
Destes 1181, 66 foram em Coimbra, o município que escolheu para caracterizar a responsabilidade profissional em saúde através dos processos remetidos ao CML. "As conclusões de Coimbra são representativas do país", considera Castanheira, opinião partilhada pelo presidente do Instituto de Medicina Legal, Duarte Nuno (ver texto ao lado). Castanheira revela que as conclusões dos pareceres do CML "em 18% dos casos apontam para o não cumprimento das leis da arte médica por parte dos profissionais de saúde".
Relativamente a indemnizações civis a doentes ou familiares, variam entre 20 mil euros (acordo entre médico e doente com degenerescência miópica que ficou "legalmente cega de ambos os olhos) e 360 mil (criança que nasceu com paralisia cerebral e morte aos 10 anos após errada utilização de fórceps). Em direito penal, e nos casos analisados, as multas a médicos variam entre 5000 (diagnóstico tardio com fraturas de costelas que causaram perfuração do pulmão) e 8400 euros (cardiologista referida na página seguinte).
SEGURO PARA OS DOENTES
O autor do estuda frisa que em muitos casos o facto de os médicos não terem sido condenados pelo tribunal não significa que os doentes não tenham sido afetados, devendo por isso ser compensados. "A Medicina não é uma ciência exata. Um médico pode cumprir as leis da arte médica e o doente ficar com sequelas graves. Nestes casos, o médico não pode ser condenado, mas a verdade é que o doente ficou com marcas, devendo ser indemnizado através de, por exemplo, seguros profissionais feitos por entidades coletivas, como hospitais, à semelhança do que já acontece noutros países".
ENTREVISTA /DUARTE NUNO VIEIRA
Presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses
O presidente do Instituto de Medicina Legal, que preside ao CML, elogia o estudo efectuado por Gonçalo Castanheira, considerando que a análise feita em Coimbra é representativa do que se passa no país.
- Qual é a importância deste estudo?
- É um estudo importante que, apesar de ter incidido no município de Coimbra, dá uma perspectva da realidade nacional no que respeita aos processos judiciais contra médicos. Não podendo fazer uma extrapolação directa, acredito que os dados analisados com base no CML reflectem o que se passa no país. Mais ou menos um por cento é um facto que tem havido um aumento substancial de processos contra médicos.
- Porquê?
- Pela maior consciência de responsabilidade dos doentes, pelo crescente interesse dos advogados neste tipo de casos, pela deterioração da relação médico-doente, na qual há menos empatia e mais recursos tecnológicos que afastam o médico do doente.
- Em 21% dos casos houve acusação ou condenação dos profissionais de saúde, maioritariamente médicos. É uma percentagem elevada ou não?
- Se tivermos em conta que estes casos são os mais problemáticos, os mais duvidosos, e por isso é que chegaram a um órgão de cúpula como é o Conselho Médico-Legal, penso que é um dado positivo. Acredito que a esmagadora maioria dos outros que não chegaram ao CML foram arquivados. Todavia, 21% não deixa de ser um número preocupante porque o ideal seria haver zero acusações ou condenações por alegada negligência médica por parte dos profissionais de saúde.
[CASOS DE ALEGADA NEGLIGÊNCIA ]
Obtenção de diagnóstico evitaria morte de menina
2004. MENINA de 10 anos, transferida do Centro de Saúde da sua área de residência para um hospital de Coimbra, com o diagnóstico de "1. Gastroenterite aguda? 2. Apendicite aguda? Diagnóstico diferencial ()".
Foi observada pelo cirurgião-pediatra que não procedeu a qualquer exame complementar a fim de estabelecer o diagnóstico diferencial entre gastroenterite e apendicite. Enviou a doente ao outro médico pediatra referido, que no mesmo dia, após palpação abdominal, afirmou não se tratar de apendicite, pelo que a medicou para as dores e lhe deu alta.
No dia seguinte, já no domicílio, por não apresentar melhoria, recorreu, a título particular, a outro médico pediatra, que confirmou os sinais de apendicite aguda. Foi de imediato transportada para a Urgência do hospital de onde tinha tido alta, falecendo na viagem. Autópsia confirmou que morreu devido a apendicite aguda.
O CML confirmou violação das leis médicas. O Ministério Público acusou os dois médicos de crime de homicídio por negligência. Ainda não é conhecida a sentença do tribunal
Médico teve de proteger a mãe e só depois o feto
2009. GRÁVIDA, 39 anos, com quisto vulvar detetado às 26 semanas de idade gestacional. Às 30 semanas foi observada na Urgência de uma maternidade de Coimbra, com diagnóstico de "quisto da glândula de Bartholin infetado".
Foi enviada para o bloco operatório. Após toque com a ponta do bisturi na mucosa que recobria a lesão resultou abundante hemorragia, com necessidade de administração de unidades de sangue.
No dia seguinte a hemorragia estava controlada, mas constatou-se a morte do feto. Foi pedida consulta ao Conselho Médico-Legal que, ao quesito se seria exigível a "retirada prévia do feto", respondeu que "a prioridade era o controlo cirúrgico da hemorragia e não havia indicação para extração fetal prévia".
Outros médicos confirmaram que "numa situação tão grave, a preocupação do médico tem de ser proteger a mãe e só secundariamente o feto". Não tendo sido demonstrada inobservância das regras da arte médica, concluiu-se pela insuficiência de indícios quanto à verificação de qualquer infração criminal. Autos arquivados.
Transferência causa o falecimento de doente
2004. HOMEM, de 72anos, entra na Urgência de um hospital de Coimbra, transferido de um hospital distrital, com "suspeita de enfarte agudo do miocárdio". É atendido por uma cardiologista. Após exames, a médica anotou "padrão enzimático compatível com enfarte em evolução".
No mesmo dia, deu-lhe alta e ordenou o regresso ao hospital distrital - que não dispunha de cuidados intensivos e que se situava a 100 km de Coimbra. No dia seguinte, o estado do doente degradou-se. Não tendo este hospital cardiologistas, foi transferido para outro hospital distrital, também sem cuidados intensivos com ventilação assistida.
O doente regressou ao hospital de Coimbra, onde faleceu horas depois. Autópsia concluiu que foi devido a enfarte agudo do miocárdio ocorrido no hospital distrital após a alta de Coimbra. O CML entendeu que "a decisão de reenviar o doente para o hospital distrital não foi a correta". Foi condenada a uma multa de 8400 euros por homicídio por negligência.
Troca de sangue fatal para vítima de acidente
2001. DOENTE, de 58 anos, vítima de acidente de viação, é submetido de urgência a uma esplenectomia (retirada do baço) num hospital de Coimbra. É pedido ao serviço de imuno-hemoterapia unidades de sangue para transfusão. Por constar no registo informático (feito há dez anos) que o doente tinha sangue tipo "A positivo", foram enviadas unidades deste tipo, antes da conclusão das provas de compatibilidade e sem a realização do teste rápido de grupagem (demora poucos minutos). Posteriormente veio a confirmar-se que o sangue do doente era do tipo "O positivo", incompatível com "A positivo".
O doente já tinha recebido o sangue errado. Na parte final da cirurgia verificou-se hemorragia "em toalha", falência multiorgânica e morte por quadro de coagulação intravascular disseminada (sangue coagulou). CML confirmou violação da leis médicas. Uma enfermeira e uma técnica foram condenadas por homicídio involuntário por negligência com multas de 3369 e 3000, respectivamente.
João Paulo Costa | Jornal de Notícias | 20-12-2012
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Para já não falar em que não denuncia, sequer, esses casos.
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