A justiça ensaia um novo ciclo, aceitando gravações não autorizadas em processos-crimes. A questão é fraturante; há dias, um advogado foi condenado por gravar uma oferta de suborno.
"É um acórdão contra o combate à corrupção, que envergonha a justiça", reagiu Ricardo Sá Fernandes à sua condenação pelo crime de gravação ilícita. Sem autorização de juiz, o advogado registara, com um telemóvel, uma conversa em que o empresário Domingos Névoa se propunha subornar o irmão dele, vereador em Lisboa.
O tribunal de primeira instância absolveu-o, mas o dono da Bragaparques recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) e levou a melhor. No recurso, Névoa jogou um trunfo valioso: um parecer de Costa Andrade, que o TRL sufragou "na sua plenitude".
Este penalista de Coimbra tem sido a grande referência da justiça portuguesa nesta problemática jurídica, com uma tese muito ciosa dos direitos fundamentais: a palavra e a imagem gravadas sem autorização judicial nem consentimento do visado, mesmo que retratem a prática de um crime, são meios de prova proibidos e fazem os seus autores incorrer em gravação ilícita.
"Por que há-de estar um juiz restringido por um catálogo de crimes e condições rigorosíssimas para autorizar escutas, ou gravação de imagens, e um paisano não?!", compara Costa Andrade. Para o catedrático, "os fins não justificam os meios" e importa proteger, acima de tudo, os direitos à palavra e à imagem. Mas "esta matéria está em efervescência", como o próprio admite, e o acórdão do TRL surgiu até em contracido.
Desde o último verão, assistiu-se a decisões surpreendentes (para Portugal) de procuradores e juízes, excluindo a ilicitude das gravações em causa e conferindolhes valor probatório, em crimes diversos (exemplos na página seguinte). Sacrificaram-se os direitos à imagem e à palavra, em prol da eficácia da investigação criminal. Pois que sentido faz proteger odireito à palavra de alguém que o exerce cometendo um crime de corrupção (pedindo um suborno)?, questiona-se numa dessas decisões.
Onde Costa Andrade vê "sinais de involução", o magistrado Simas Santos reconhece a "tentativa de os tribunais encontrarem novos equilíbrios". "Porque a grande questão é: os direitos fundamentais sobrepõem-se a tudo? Não sobrepõem!", defende.
A procuradora Maria José Morgado concorda: "A função do juiz é admitir a validade de tais meios de prova, desde que se verifique necessidade, proporcionalidade e adequação, tendo em conta a gravidade dos crimes e o direito de punir".
Nelson Morais | Jornal de Notícias | 04-06-2012
Comentários (7)
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Bom senso
Não tenho tempo nem espaço para a desenvolver aqui. Quero apenas dizer que sou daqueles a quem causa urticária a tese da permanente declaração de nulidade de todos estes meios de prova. Percebo o conflito dos direitos em causa, já não percebo a visão estritamente matemática e lógica do processo penal defendida por tão doutos Mestres. É preciso explicar aos Mestres que o processo não é uma equação matemática, ou uma asserção lógica, que tem de ser perfeita em si mesma, e que não sai do plano lógico abstracto e não é poluída pelo choque brutal com uma realidade suja, e tantas vezes asquerosa. O processo penal, para o bem e para o mal, está irrigado da cabeça aos pés com a seiva suja que vem do mundo real, e que lhe percorre as veias desde o inquérito até à sentença final. Fechar os olhos ao mundo real e querer continuar a defender a perfeição lógica das normas processuais, à custa de decisões judiciais aberrantes porque destruídas com 5 segundos de visionamento de um filme, salvo o devido respeito, é asneira e cegueira. E a melhor maneira de o perceber é imaginar um cenário que não é difícil de acontecer na prática, de estar perante um crime hediondo, v.g. homicídio em massa, em que o único meio de prova é uma gravação video feita por um particular, não autorizado pelo próprio mega-homicida.
Num caso destes não é dificil de imaginar o que aconteceria ao mega-homicida assim que fosse libertado com fundamento em que as imagens, vistas pelo País inteiro e sobretudo pelos familiares das vítimas, violavam o seu direito à imagem e logo não podiam ser usadas como prova em Tribunal. E muito provávelmente, quando as autoridades fossem buscar o corpo do dito ao candeeiro onde estava pendurado, veriam que dos candeeiros ao lado pendiam os juízes que o absolveram, o advogado que o defendeu e o autor do parecer que levou à absolvição.
É preciso polvilhar a matemática processual dos nossos Mestres em Direito com uma enorma dose de bem senso e de visão da realidade, senão as coisas vão mais tarde ou mais cedo dar para o torto.
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Na minha opinião, questões desta natureza resultam sobretudo da incapacidade do intérprete se limitar a respeitar aquilo que o legislador (bem ou mal, não interessa) a cada momento vai tornando lei, seja o intérprete Advogado, Procurador e, sobretudo, Juiz.
E, normalmente, essa incapacidade de respeitar aquilo que foi decidido, por quem de direito, fixar como lei, coincide quase sempre com um atrevimento próprio dos mais impreparados.
Normalmente aditar à incompetência o atrevimento, tornam o intérprete num convencido fazedor doméstico de leis, um "legislador de trazer por casa".
E o que deveria ser objetivo, rigoroso e unívoco (a lei geral e abstrata), torna-se perversamente subjetivo, aleatório e imprevisível. Tanto mais quanto, em concreto, a capacidade do intérprete pode tornar efetiva, em razão da profissão que exerce, essa pessoal e desvirtuada interpretação (caso dos juízes, principalmente nas decisões irrecorríveis).
Se a lei diz "não se pode gravar sem autorização", e se disser ainda que "o uso dessa gravação não autorizada constitui um ilícito penal", então, concorde-se ou não, dê mais jeito ou não, seja até moralmente questionável ou não, a UNICA coisa que há a fazer é optar por:
Cumprir e aplicar a lei no caso sob apreciação (a lei lei, e não a do interprete) - ou seja - fez a gravação, não estava autorizado, pune-se; ou então, para futuro, mudar a lei.
A tendência portuguesa para "inventar" é absolutamente censurável, e até criminosa, pois viola a espectativa mais elementar do cidadão, que é a de esperar o cumprimento rigoroso e escrupuloso da lei.
Quem se sinta com veia de legislador (interprete do sentimento coletivo de justiça), que integre então órgão com competência legislativa e, neste, dê asas à sua criatividade. Senão o fizer, não tem outra solução (respeitável) que não a de aplicar na sua atuação, de forma objetiva e rigorosa, a lei que os "outros" a cada momento vão fazendo.
Não há pior contributo para a justiça do que os “legisladores interpretativos”, pois sendo os “chicos espertos do direito” permitem que, em nome de alegados “interesses superiores”, ou da “ponderação de valores diferenciados de proporcionalidade e adequação que cumpre acautelar” e outras bizarrices (quando delas se faz uso impróprio por descontextualizado), que vão proliferando nos nossos tribunais, se crie a ilusão que é essa a solução “cientificamente” correta.
Concluindo, e sem desprimor para os primatas, cada macaco no seu galho.
Filme
Alguém viola uma criança numa rua escura e está a ser filmado por alguém. Este alguém entrega o filme no MP, que de imediato abre um processo contra o violador, perfeitamente identificado é um homem normal da classe média, sem dinheiro ou aventais.
Posto isto pergunta-se há acusação, julgamento.....???? Vamos pedir parecer ao ilustre jurista citado. O parecer iria no mesmo sentido?
Pela lógica sim. Afinal a interpretação e aplicação da lei tem de ser igual para todos. Mas volto a perguntar a interpretação seria a mesma? E se a criança fosse de fulano ou sicrano!?
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E, normalmente, essa incapacidade de respeitar aquilo que foi decidido fixar como lei, coincide quase sempre com um perverso atrevimento, próprio dos mais impreparados.
Normalmente aliar à incompetência o atrevimento, tornam o intérprete num convencido fazedor doméstico de leis, um "legislador de trazer por casa".
E o que deveria ser objetivo, rigoroso e unívoco (a lei geral e abstrata), torna-se traiçoeiramente subjetivo, aleatório e imprevisível. E isto é tão mais grave quanto, em concreto, o intérprete tem poder de tornar efetiva, em razão da profissão que exerce, essa pessoal e desvirtuada interpretação (caso dos juízes, principalmente nas decisões irrecorríveis).
Se a lei diz "não se pode gravar sem autorização", e se disser ainda que "o uso dessa gravação não autorizada constitui um ilícito penal", e não condicionar esses comados objetivos a quaisquer circunstâncias que devam ser concretamente ponderadas, então, concorde-se ou não, dê mais jeito ou não, seja até moralmente questionável ou não, a ÚNICA coisa que há a fazer é optar por uma de duas:
Cumprir e aplicar a lei no caso sob apreciação (a lei lei, e não a do interprete) - ou seja - fez a gravação, não estava autorizado e usou-a, pune-se; Ou então, muda-se a lei para futuro.
A tendência portuguesa para "inventar" é, neste particular, absolutamente censurável e até criminosa, pois viola a espectativa mais elementar do cidadão - esperar o cumprimento rigoroso e escrupuloso da lei.
Quem se sinta com veia de legislador (interprete do sentimento coletivo de justiça), que integre então órgão com competência legislativa e, neste, dê asas à sua criatividade. Senão o fizer, não tem outra solução (pelo menos respeitável) que não a de aplicar, na sua atuação, de forma objetiva e rigorosa, a lei que os "outros" a cada momento vão fazendo.
Não há pior contributo para a justiça do que os “legisladores interpretativos” foras dos escassíssimos casos previstos, pois sendo, então, os “chicos espertos do direito” permitem que, em nome de alegados “interesses superiores”, “ponderação de valores diferenciados de proporcionalidade e adequação que cumpre acautelar” e outras bizarrices (quando delas se faz uso impróprio por descontextualizado), que vão proliferando nos nossos tribunais, alimentem a ilusão que é essa a solução “cientificamente” correta.
Concluindo: O intérprete deve, sem exceções, respeitar e aplicar a legislação existente. Ou seja, sem desprimor para os primatas, cada macaco no seu galho.
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No caso do possível mega-homicídio, avançado por Hannibal Lecter, sem embargo de o resultado previsível - sem surpresa - da eventual recusa da prova ser o que vem sugerido, não me parece que seja necessário qualquer consentimento do homicida. Tratar-se-á de uma gravação vídeo em local público ou acessível ao público e não, por certo, em casa do tal mega-homicida.
Muito diferente de gravar uma conversa privada.
O caso da violação de uma criança numa rua escura em que alguém está a filmar o violador, levanta-me grandes interrogações. Esse alguém, em vez de filmar, não faria melhor em tentar impedir o crime ou a sua continuação? Não tinha um telemóvel - ou estava a utilizá-lo nas filmagens? - para poder chamar a polícia? Em todo o caso a diferença é a mesma. Video-gravação em local público não é exactamente o mesmo que gravação de conversa privada.
Interrogações e inquietações
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc
732316039802565fa00497e
ec/a42615ca8751fdc1802579f
00054ec98?OpenDocument
(Colem os pedaços)
Vide a anotação que Costa Andrade faz ao art. 199 no Comentário Conimbricense.
Estive a lê-lo ontem à noite um pouco à pressa, "na diagonal", sendo que me pronuncio com base nessa leitura um pouco apressada.
Tanto quanto percebi, o Prof. Dr. Costa Andrade considera que é lícito gravar, por exemplo, uma conversa em que o interlocutor nos injuria ou ameaça. Mas, nos termos do parecer emitido para este acórdão, não admite a gravação de conversa em que o interlocutor convida a um suborno.
Ora, axiologicamente, vejo mais parecenças do que diferenças entre as duas situações. Daí que, para mim, o que vale para uma situação, vale para a outra: há causa de justificação, tornando lícita a gravação da conversa de que trata o acórdão da Relação de Lisboa.
Salvo o devido respeito - e consideração pelo Autor do parecer, que é muita, sendo Costa Andrade um eminentíssimo Penalista - aplicar (por igualdade ou maioria de razão) as normas a que os agentes promotores de um inquérito processual-penal têm de obedecer na recolha de provas, ao comportamento de "um paisano"... seria o mesmo que dizer que a legítima defesa, quando consiste na morte de homem, está proibida... com o fundamento de que Portugal está penalmente proibida ao Juíz aplicar pena de morte...
Ou serei eu que vejo mal ao fazer esta analogia? Onde está a falácia: no meu raciocínio ou no de Costa Andrade? Ou em ambos ou em nenhum?
Analogamente, será que também seria proibida a acção directa contra o esbulhador, só porque no Código de Processo Civil está regulada, com todos os "éfes" e "érres"... a acção de restituição da posse?!? Valendo então o princípio de que ao "paisano" não é possível utilizar de meios que ao Juíz não são permitidos? (Se entenderem que esta analogia não faz sentido, não deixem de exprimir a discordância, e de fundamentar o porquê da discordância.)
Repiso:
Uma conversa gravada por um particular em que lhe são dirigidos insultos é ilícita? Não! - parece ser a opinião consensual na doutrina e jurisprudência (se eu estiver errado, digam-me, por favor).
E (caso a)) a gravação de um conversa da qual se suspeita - legitimamente, por via das regras da experiência - que será uma conversa em que o interlocutor nos propõe um suborno, ou um suborno a terceiro, pedindo-nos colaboração?
É ilícita?
Com base em quê? Nas normas que regulam (caso b)) a autorizaçãopara a intercepção de comunicações quando feitas em inquérito por órgãos de polícia criminal?
Que tem uma coisa que ver com a outra? No primeiro caso (a)), temos uma vítima a preservar provas de outra forma impreserváveis; no segundo caso (b)), a proibição de escutas feitas a torto e a direito visa impedir a implementação de um Estado totalitário, ou um mini-Estado totalitário dentro de um aparente Estado democrático.
Salvo melhor opinião, a última proibição referida não tem nada que ser aplicada ao "paisano" que se vê insultado numa conversa telefónica e põe a fita a gravar. Ou que se vê convidado a ajudar num suborno. A proibição de escutas feitas por órgãos de polícia criminal em desrespeito das normas processuais penais não tem - não pode, em meu entender - ser extensível ao "paisano" que, sem tempo útil para convocar a autoridade e a força do jus imperii (requisito geral da necessidade nas causas de justificação de factos que seriam, de contrário, ilícitos) decide, ele próprio, efectuar a gravação de uma conversa em que lhe é proposto a colaboração num crime. Donde, com todo o respeito, a minha total discordância com a douta opinião do Sr. Prof. Costa Andrade.
Ainda outra nota, concretamente sobre o acórdão: o "direito à plavra" compreende o direito a... tentar pedir a colaboração de outrem num suborno?!? Obviamente que não, salvo melhor opinião.
E diz o acórdão que foi o arguido - o Advogado Sá Fernandes - a criar a situação de perigo, quando vai ao encontro do assistente para conversar com ele. Então mas não ficou mais que provado, na 1ª instância, que foi o agora assistente a solicitar o encontro e a conversa? Salvo o devido respeito, tal afirmação deixa-me estarrecido. No entender da Relação, sempre que alguém nos convida para uma conversa que, pela natureza das coisas, indicia ser uma conversa com vista ao pedido de colaboração para prática de facto ilícito, o "convidado" deve recusar ir ao encontro. Isto, para mim, é uma inversão dos valores por que a Ordem Jurídica pugna e que tutela. Com todo o respeito pelo acórdão da Relação.
Alguém pode, por obséquio, disponibilizar o texto completo do parecer?
Grato, G O G
...
1.º A prova iílicitamente obtida é utilizável, pois o criminoso não tem de beneficiar de erros processuais de quem obtem a prova para ficar impune;
2.º é ridículo que essa prova não possa servir para condenar um assassino por homicídio mas já sirva para condenar quem a obteve pelo crimezeco bagatelar que essa obtenção consubstancia (art. 126/4 do CPP)
3.º A solução era responsabilizar criminalmente que obtem ilicitamente provas (sem prejuízo da ocorrência de causas de justificação ou de desculpa).
É tempo de nos deixarmos de lirismos ao querer manter regras do sec. XIX para combater crimes e criminosos do sec. XXI.
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