Recolhas só são possíveis depois de os suspeitos passarem a arguidos. Responsáveis da base de dados demitiram-se.
Mais um tiro no moribundo. A base de dados de ADN, com que a polícia sonhava por ser uma ferramenta científica indispensável no combate ao crime mais violento, está a morrer desde que foi criada, há quatro anos. Não há perfis suficientes para trabalhar de forma eficaz e as regras para recolher vestígios são apertadas; há leis que se contradizem, outras que faltam e mais algumas duvidosas; o dinheiro é pouco e as decisões políticas não existem. E agora o processo corre o risco de parar de vez. Os três membros do Conselho de Fiscalização (CF), a quem cabe garantir a regularidade dos atos realizados na base de dados e sem os quais estes poderão não ser legais, pediram a demissão.
A carta em que o juiz-conselheiro Simas Santos e as professoras de Direito Helena Moniz e Paula Faria renunciam aos cargos seguiu por correio registado para a presidente da Assembleia da República, de quem depende o CF, no dia 23 de maio. Ou seja, há duas semanas. Até hoje não houve qualquer resposta. Simas Santos nem sequer tenta mostrar-se surpreendido. "Temos sido autênticos cavaleiros andantes contra a inércia. Mas durante todo este tempo apenas encontrámos paredes."
A imagem é útil. Junto à porta de saída, Simas Santos enumera problemas como quem espalha quadros pela parede. Nem lhe é difícil avançar com o primeiro, o mais próximo: "A Lei Orgânica do Conselho de Fiscalização, indispensável para que funcione, ainda não existe e devia ter sido aprovada em 2008." O resto? A lei da base de dados colide com o que está previsto no Código de Processo Penal para a recolha de prova. Os polícias não podem recolher amostras de meros suspeitos, mesmo consentidas — só de arguidos. Os magistrados do Ministério Público são pouco sensíveis à inserção de vestígios (anónimos) recolhidos nos locais e por regra não o fazem. Os juizes nem sempre ordenam a recolha de perfis de condenados a pena igual ou superior a três anos. E ainda falta transpor legislação europeia para Portugal, reforçando a cooperação internacional.
Mas, afinal, o que é que está na base de dados? "Números. Apenas números", garante uma fonte judicial. "Não há qualquer informação pessoal. Há mais dados sobre uma pessoa na fatura da água ou da luz." Na prática, explica, cada perfil genético (seja de um indivíduo ou de um vestígio) corresponde a um código de barras único, com marcadores genéticos específicos. A pesquisa trata de identificar perfis com um número mínimo de marcadores comuns (12 em Portugal). "Mas para ser eficaz a base tem de ter dados. Na Alemanha há mais de 500 mil perfis. Em França e Espanha há um milhão", refere.
Em Portugal, segundo o Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), existem 670 perfis. "A inserção de pelo menos 70 mil a 80 mil perfis de ADN é condição de eficácia de qualquer biobanco", assegura Maria José Morgado, diretora do DIAP de Lisboa, para ilustrar a dimensão do problema. A consequência? "A impunidade alargada. O aumento das dificuldades em reduzir o crime violento contra as pessoas ou contra o património e a criminalidade grave. Não é possível quantificar as consequências por não existir um verdadeiro sistema informático para análise e tratamento de dados. A ignorância descansa-nos a todos?", questiona.
Suspeitos e precauções
Carlos Figueira, procurador do DIAP de Lisboa, recorre a um caso limite para mostrar o que diz estar errado. "Tendo dez suspeitos de um crime de violação, que não passem de suspeitos, mas sabendo-se que entre eles está o autor material do crime, o drama será a impossibilidade de prosseguir, pois o exame (recolha de ADN) apenas pode ser ordenado quanto a arguidos já constituídos." Isto porque a constituição de arguido pressupõe que exista uma fundada suspeita sobre alguém. O ADN passa de determinante a acessório.
Helena Moniz, professora na Faculdade de Direito de Coimbra e membro do CF demissionário, já ouviu este argumento antes. Mas responde sempre que a recolha de ADN, por interferir com direitos fundamentais dos cidadãos, tem de ser encarada com todas as precauções e não como "apenas mais um meio de prova como outro qualquer". "Neste momento, nos EUA, onde o ADN é muito usado, começa a surgir uma discussão séria sobre o recurso a este tipo de prova", assegura, mesmo reconhecendo que há vários aspetos da lei que regula a base de dados que deviam ser alterados.
Em Portugal, os perfis de condenados a penas superiores a três anos deviam já estar na base de dados, por ordem dos juizes. E os vestígios recolhidos na investigação também, mediante despacho do Ministério Público (as chamadas amostra-problema). "Uma singularidade portuguesa, que não ocorre em mais nenhum país, onde as polícias fazem esse trabalho de forma independente", admite um investigador.
Simas Santos lembra que, a par da ação omissa dos magistrados, o preço da recolha de amostras de ADN no INML é outro dos problemas. Duarte Nuno Vieira, presidente do INML (de quem o CF depende financeiramente, apesar de o fiscalizar), rejeita, em resposta por escrito, esse argumento. "Se o principal problema fosse o custo acrescido da análise, esperar-se-iam muito mais perfis de amostras-problema (em que não há custos acrescidos por mandar inserir o perfil na base de dados) do que de condenados (custa €204 por pessoa), sendo exatamente o oposto que se verifica", explica.
Na hora da partida, o juiz-conselheiro Simas Santos esperava sair em silêncio. "Sempre optámos pelo low-profile. Apresentámos relatórios anuais e propostas ao Parlamento e nunca obtivemos resposta. Pedimos uma audiência com a ministra da Justiça e disseram-nos que ela estava a estudar os dossiês. A presidente do Parlamento disse-nos que ia sensibilizar os grupos parlamentares, mas nada mudou." Ao Expresso fonte do gabinete de Assunção Esteves garantiu que o problema está a ser acompanhado. "O Gabinete da Presidente da Assembleia da República com o presidente da 1.ª Comissão encontrarão, com certeza, uma saída".
A importância de um fio de cabelo
Num mundo ideal, basta um minúsculo fio de cabelo caído numa casa assaltada para começar um tratado sobre ADN. Esse cabelo é analisado e convertido numa espécie de código de barras.
A seguir, é comparado com todos os perfis existentes na base de dados, à procura de uma correspondência (um número mínimo comum de marcadores/características únicas): pode ser um indivíduo ou um vestígio encontrado noutro local de crime. Maria José Morgado diz ao Expresso que, em 2010, o estado de Virginia, nos EUA, "solucionou 288 crimes exclusivamente com recurso ao vínculo entre o material genético recolhido na cena do crime e o de uma pessoa detida ou suspeita".
A lei portuguesa impõe, no entanto, uma série de regras apertadas para que possa ser feita a recolha de ADN durante uma investigação. Carlos Figueira, do DIAP, considera que "o excesso de garantias é tão mau como a falta delas. Acaba por não se compreender que a tecnologia que existe em Portugal não possa estar ao serviço do interesse público".
Duarte Nuno Vieira, do INML, lembra que existem defensores de uma lei menos exigente, bastando que haja uma solicitação da polícia para a recolha de ADN.
"No entanto, tal proposta foi recentemente criticada publicamente por elementos da Comissão Nacional de Proteção de Dados, com o argumento de que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos estão mais salvaguardados se houver intervenção de um magistrado", lembra o diretor do INML
Ricardo Marques | Expresso | 09-06-2012
Comentários (6)
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E quanto menos um cidadão confiar no Estado, mais sentirá os seus direitos fundamentais ameaçados, seja lá pelo que for.
Mas isto são apenas palavras.
O que nos interessa é, sem sair da abstracção, definir o mais possível os casos em que, em concreto, a recolha de ADN restringe esses direitos fundamentais de forma inadmissível, desproporcionada e, por isso, a recolha não deverá ser autorizada.
Que casos são esses?
Quando começarmos a falar deles, quero dizer da realidade, então poderemos começar a entender-nos.
Cá por mim não tenho qualquer problema em ceder um pouco de saliva para uma base de dados, pois não estou a pensar que venha por aí um Big Brother ou que alguém ande a pensar fazer um assalto e ande atrás de mim para recolher material biológico meu para o colocar no local do crime.
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--quando se empobrece, há menos direitos;
--quando se empobrece, há coisas simples;
--quando se empobrece, a simplicidade não é sinónimo de futilidade, é suficiência;
--quando se empobrece, não se brinca com quem paga impostos, e não sao os servidores do Estado que verdadeiramento os pagam;
--quando se empobrece não se anda há um ano a pensar em reformas: já deviam estar estudadas.
--quando se empobrece poupa-se no papel, na caneta, e no tempo.
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Reduzindo o exemplo aos limites do bom senso (dois ou três suspeitos) o problema é, no entanto, o mesmo.
Mas a abordagem deve ser outra, uma vez que há colisão com direitos fundamentais.
Admitindo que são mesmo suspeitos (ou seja que existe algum fundamento para o serem, o que parece não estar no horizonte do Sr. Procurador, para o qual os 10 são suspeitos por palpite) há que dizer-lhes do que é que são suspeitos e perguntar se pretendem submeter-se voluntariamente à colheita de ADN. Se sim, faz-se e, provavelmente, elimina-se o suspeito. Se não, provavelmente, será o único a recusar-se, e talvez já haja fundamento para o sujeitar à prova.
Não pode é viver-se à base dos filmes americanos e deixar de se investigar a recolher outras provas só porque algumas dão menos trabalho.
Mas, em boa verdade, não me parece que haja verdadeira colisão com direitos fundamentais na recolha de saliva de um mero suspeito se, após a análise e se o resultado for negativo, o respectivo perfil for destruído e nunca incluído numa base de dados.
A questão é que não é isso que a polícia pretende.
O que se pretende é a colheita sem quaisquer restrições a qualquer pessoa - que pode não ser suspeita de coisa nenhuma mas alcunhada como tal pelos investigadores - e depois a sua inclusão discricionária numa base de dados.
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Penso que se fosse hoje que surgisse a ideia da recolha das impressões digitais, logo algum iluminado encontraria um qualquer direito fundamental derivado da vida intima/privada para impedir a recolha das mesmas..
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Portugal, ao contrário, manobrado por uma casta de legalistas cuja única finalidade prática é "defender o coitadinho do criminoso contra o tenebroso agente de autoridade do Estado" possui uma base de dados que é uma anedota, devido às barreiras procedimentais que a Lei introduziu.
Infelizmente, a classe da advocacia tornou-se o principal obstáculo ao desenvolvimento de uma Justiça célere, eficaz e justa, reforçando esta conclusão pelo Bastonário que essa corporação elegeu.
Todos os que trabalham no sistema de justiça conhecem as bases de dados de informação criminal, as bases de dados do AFIS contendo as impressões digitais de suspeitos de crimes e as bases de dados fotográficas dos mesmos. Destas bases de dados, cuja existência é pacífica, já ninguém se lembra. Contudo, o que é consensual em todos os países civilizados como uma importante ferramenta de combate ao crime (que deveria interessar a todos inclusivamente aos advogados), neste rectângulo falido à beira mar plantado, é uma afronta aos direitos dos pobres cidadãos suspeitos de crime. Para agravar mais esta situação, de forma consciente ou por puro desconhecimento, é propagada a ideia que esta base de dados guarda material biológico, o que é falso. Apenas são armazenados números, doze ao todo para casa indivíduo e correspondentes aos doze marcados genéticos que a Lei exige.
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