Diminuição das saídas é confirmada pelos guardas prisionais, advogados e responsáveis pela pastoral penitenciária da Igreja Católica. As famílias visitam menos por causa do custo dos transportes.
As cadeias estão sobrelotadas, o papel higiénico não chega sequer para os funcionários, mas, ainda assim, a crise está a fazer com que um número crescente de reclusos decline a possibilidade de sair em precária ou condicional. "As dificuldades financeiras das famílias são tantas que deixaram de ter condições de receber os reclusos", denuncia Júlio Rebelo, do Sindicato Independente dos Guardas Prisionais.
"Os reclusos sabem que na cadeia têm refeições garantidas, assistência médica e roupa lavada, o que se tornou mais difícil de garantir cá fora", confirma Jorge Alves, do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional, para concordar que "muitos preferem ficar em reclusão do que virem para uma liberdade muito condicionada pela deterioração das condições económicas".
A este cenário, que surge como consequência directa da crise que está arrasar o país, o coordenador nacional da pastoral penitenciária da Igreja Católica, João Gonçalves, acrescenta outra nuance: "Muitos reclusos queixam-se que as visitas estão a ficar mais espaçadas, porque os familiares vivem longe e têm cada vez mais dificuldades em suportar o custo das viagens". Porque "as visitas são essenciais para que os reclusos não percam a ligação com o mundo exterior", a Igreja Católica está a criar nas diferentes dioceses "grupos de pessoas" capazes de garantir o apoio necessário às famílias com reclusos. "Não é só para garantir às famílias a possibilidade de visitarem os seus presos, mas também para as ajudar na sua reintegração".
O advogado Pedro Miguel Carvalho, com vários reclusos na sua carteira de clientes, aponta ainda outra realidade decorrente da crise: o aumento do número de processos de regulação das responsabilidades parentais por denúncia dos reclusos junto do Ministério Público. "Muitos dos cônjuges de quem está preso estão a emigrar e a levar os filhos. Se isso já é complicado numa situação normal, é-o ainda mais quando um dos pais - geralmente o homem - está preso, na medida em que este fica anos sem poder ver os filhos", relata o advogado.
Esta desagregação familiar compromete seriamente as hipóteses de reinserção social dos reclusos, já de si muito comprometida pela falta de meios humanos e materiais das prisões, conforme alertava há dias a Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça, que concluía que, no fim da pena, os reclusos são "despejados na rua". "Um dos factores centrais do sucesso na reintegração do recluso é não haver reincidência e a garantia de suporte familiar, bem como a consciência de que se cometerem novo crime serão afastados dos filhos. Com esta debandada das famílias de suporte...".
Quanto à preferência dos reclusos por permanecerem dentro de grades neste cenário de crise, Pedro Miguel Carvalho não precisa de pensar muito. "Tenho um cliente na cadeia de Izeda [Bragança] que já não sai para não sobrecarregar o parco orçamento da família. E tenho outros que começaram a pedir aos familiares que não os visitem por causa da precariedade económica. Genericamente, os reclusos têm direito a duas visitas semanais; agora estão reduzidos a uma e ou mesmo nenhuma, porque de facto, ainda por cima com esta insensatez de deslocar o recluso para um estabelecimento central a muitos quilómetros de distância, já não há dinheiro para a camioneta ou para a gasolina".
Menos 1500 saídas
Constatada no terreno de forma consensual, esta recusa dos prisioneiros em sair da cadeia por falta de dinheiro começa também a ganhar expressão estatística. A Direcção-Geral dos Serviços Prisionais (DGSP) disse ao PÚBLICO que, entre 1 de Janeiro e o passado dia 26 de Novembro, foram concedidas 8493 licenças de saída, contra as 9929 do ano anterior. Contas feitas, passou-se de uma média de 827 precárias por mês em 2011 para 727 este ano. Nas saídas em liberdade condicional também houve uma ligeira diminuição: 1499 reclusos saíram antes de cumprida a totalidade da pena em 2011, contra os 1237 até 26 de Novembro passado. Ou seja, passou-se de uma média de 125 "condicionais" por mês para 112. A diminuição torna-se mais expressiva se considerarmos que o universo total de reclusos aumentou de 12.681 para 13.478.
Ao PÚBLICO, a DGSP garante que "a situação económica não constitui critério para concessão ou não de licenças da saída jurisdicional ou de liberdades condicionais". Mas o próprio código de execução de penas estabelece que "o ambiente social ou familiar em que o recluso se vai integrar" é um dos factores de ponderação. O sindicalista Jorge Alves lembra, de resto, que uma das etapas para a concessão da saída "passa pela Direcção-Geral de Reinserção Social contactar a família indicada pelo recluso e perguntar-lhe se tem condições para o acolher durante aquele período".
Por outro lado, Júlio Rebelo sustenta que alguns dos reclusos até podem obter autorização para sair, mas acabam por não gozar a licença "porque não têm condições para se aguentarem no exterior". "Adiam ou dizem que preferem não gozar", acrescenta, para explicar que esta realidade, "perceptível nas conversas guardas e reclusos", nem sempre chega ao conhecimento da instituição. "Se os reclusos forem dizer que não saem porque a família não tem condições para os receber, terão muito mais dificuldade em obter novas licenças no futuro", sustenta.
Da rua para a cadeia
O coordenador nacional da pastoral penitenciária, directamente ligado à cadeia de Aveiro, acrescenta que também há muitos reclusos que até querem sair em precária mas não têm quem os receba. Por recusa da família ou por outro motivo qualquer. "Muitas vezes somos nós, capelães, a conseguir-lhes uma pensão onde possam ficar e comer durante aqueles dois ou três dias", conta. Mas resiste a estabelecer uma relação directa entre este fenómeno e a crise económica e social. "Algumas destas pessoas são desestruturadas, saem da rua para a cadeia, sempre foram pobres de dinheiro e de família", descreve o padre.
A Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR) encontra outras explicações para "a fortíssima diminuição" das saídas precárias e em liberdade condicional. "Os tribunais de execução de penas atrasam-se muito a dar resposta aos pedidos de saída. Neste momento há cerca de três mil presos à espera de resposta dos tribunais", acusa Vítor Ilharco, secretário-geral da APAR. "Os juizes recebem os relatórios mas não dão resposta nenhuma. E, sem despacho, os presos nem sequer podem recorrer de uma eventual decisão negativa".
Este problema não é novo e foi, aliás, escalpelizado em Julho, quando 174 reclusos de Paços de Ferreira se queixaram à ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, da lentidão dos tribunais de execução de penas que os impedia de usufruírem da liberdade condicional nas suas várias modalidades. Na altura, o presidente da Associação Sindical dos Juizes Portugueses, Mouraz Lopes, reconhecia a gravidade da situação e imputava o problema à escassez de juizes e funcionários judiciais que se mantinham os mesmos apesar de, em dois anos, os reclusos terem aumentado de 11 mil para 13 mil. Ao PÚBLICO, Pedro Miguel Carvalho, advogado dos reclusos, reconheceu que está a ser feito um esforço para recuperar o atraso, mas que este perdura. Assim, continua em cima da mesa a intenção de avançarem com uma acção contra o Estado português.
Há 3800 guardas para 13.600 presos: ambiente é "explosivo"
O cenário de atrofiamento dos reclusos dentro das cadeias convive com o agravamento dos velhos problemas: da sobrelotação à insuficiência de meios operacionais, passando pelo facto de haver poucos guardas para um universo crescente de reclusos. O diagnóstico pela voz de António Pedro Dores, do Observatório das Prisões: "O ambiente é explosivo. Está a voltar àquilo que foi nos anos 1990. A prova disso é que no último Verão houve vários movimentos colectivos organizados, o que numa prisão é coisa raríssima: só acontece em alturas de extraordinária tensão".
Júlio Rebelo, do Sindicato Independente dos Guardas Prisionais, ajuda a concretizar as raízes deste descontentamento. "Há material de vigilância por reparar há meses, por falta de dinheiro; rádios que não funcionam porque as baterias estão obsoletas; viaturas celulares encostadas; casos em que os próprios guardas têm de levar papel higiénico". O sindicalista aponta ainda o facto de os guardas em serviço no exterior terem muitas vezes no telemóvel pessoal o único meio de contacto com o estabelecimento prisional.
"Como andamos a reaproveitar papel de fotocópias, acontece irem folhas para as aulas dos reclusos que têm nas costas escalas de serviço dos guardas. O problema foi detectado uma vez e as folhas retiradas imediatamente, mas voltou a acontecer". Jorge Alves, do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional, acrescenta à lista a inexistência de meios para combater um incêndio que ocorra no interior da prisão. "Se acontecer alguma alteração da ordem nas prisões, e estão criadas as condições para isso, será muito difícil manter o controlo", conclui. Para os 13.630 reclusos que em Novembro sobrelotavam os 12.077 lugares das cadeias portuguesas, há 4200 guardas. "Se retirarmos o pessoal noutras funções e os que estão de baixa, temos 3800 em desempenho de funções, o que quer dizer que, em cada turno, há 1600 guardas para mais de 13.500 reclusos". Ao PÚBLICO, a Direcção-Geral dos Serviços Prisionais (DGSP) lembrou por escrito que "foi feito um esforço para a admissão de 250 novos guardas, cujo curso se concluiu recentemente com a aprovação de 238 formandos". "É verdade", reconhece Júlio Rebelo, "mas o corpo prisional continua com um défice de 800 homens". Acresce que, segundo Jorge Alves, "mais de 25% dos guardas têm mais de 55 anos". Tradução prática: "Se houver, como se prevê, uma corrida às reformas, por causa das novas regras previstas no Orçamento do Estado, vai ser o caos".
A escassez de guardas e de meios convive não só com o aumento dos reclusos (eram 12.681 no final de 2011) mas também com o seu grau de perigosidade. "A criminalidade provocada por gangues está a aumentar. São indivíduos mais violentos e organizados. Entram mais facilmente em conflito pelo controlo dos outros reclusos, o que levanta problemas de segurança acrescidos", nota Júlio Rebelo.
A DGSP sublinha que estão em processo de aquisição novas viaturas celulares que "brevemente estarão ao serviço". E que os problemas da sobrelotação serão minimizados com as obras de ampliação e remodelação que estão já em curso em S. José do Campo, Viseu, e nos estabelecimentos prisionais de Alcoentre, Caxias e Linhó.
Para lá da ampliação das cadeias, António Pedro Dores considera que o problema merece um ataque noutras frentes. "A duração efectiva das penas em Portugal é três vezes a média europeia", lembra. Uma aposta mais forte nas penas em regime aberto "ajudaria também a cumprir o papel ressocializador das cadeias, por oposição ao espírito repressivo que, não obstante as palavras simpáticas, ainda vigora", segundo o mesmo responsável.
Natalia Faria | Público | 01-12-2012
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