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REVISTA DE 2012

Três acusações que ameaçam a carreira de Baltasar Garzón

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Começou esta semana a encenação do calvário judicial que poderá acabar com a carreira profissional do juiz espanhol Baltasar Garzón. O primeiro dos três casos por que é julgado é punível com desqualificação por 17 anos, significando na prática o afastamento definitivo da magistratura. Suspeita-se que as queixas são fruto de desejos ocultos de acerto de contas, vingança política, inveja profissional e preconceitos ideológicos. A acusação pública não vê crime na conduta do juiz.

Cobrem o processo mais de 200 jornalistas, incluindo correspondentes e enviados especiais de 30 dos maiores meios de comunicação mundiais. Organizações e partidos progressistas apoiam o juiz, ao passo que personalidades e porta-vozes conservadores não escondem a satisfação por o verem julgado.

Neste primeiro processo, o Supremo Tribunal acusa Garzón do crime de prevaricação (tomar uma decisão sabendo que é injusta), por ter ordenado a gravação de conversas telefónicas entre os principais acusados no caso Gúrtel — teia de corrupção que envolve o Partido Popular, no poder — e os seus advogados, ao suspeitar que colaboravam na ocultação de provas e no branqueamento de capitais. Protegido pela qualidade de juiz, Garzón não ocupa o banco dos réus. Senta-se, vestido com a toga, junto do seu advogado. Só foi obrigado a despi-la quando as partes compareceram para o interrogar.

No caso Gurtel são arguidos, entre outros, altos cargos do governo autónomo da Comunidade Valenciana (do PP, que fala em perseguição), incluindo o ex-presidente Francisco Camps. São acusados de receber presentes em troca de favores nos concursos públicos.

Os acusadores de Garzón argumentam que violou o direito de defesa dos arguidos ao gravar os advogados. Garzón negou-o, alegando que gravava presos e não causídicos, como ficou provado ao não resultar das gravações qualquer diligência judicial. As escutas foram autorizadas pelos promotores públicos e confirmadas pelo juiz do processo.

Dois dos sete magistrados que julgam Garzón — Varela e Marchena — são instrutores dos outros dois processos que ele enfrenta nos próximos dias: um por ter investigado os crimes da ditadura franquista (julgamento a 24 e 31 deste mês), impulsionados por duas organizações de extrema-direita, o partido da Falange Espanhola e a associação Manos Limpias, a quem o procurador acusou de “patente voracidade litigante”; outro devido a uma acusação de suborno por ter recebido dinheiro dos patrocinadores dos cursos que organizou na Universidade de Nova Iorque. Garzón tentou em vão recusar Varela e Marchena, aduzindo a sua manifesta parcialidade, mas nem o Supremo nem o Constitucional aceitaram. Conseguiu recusar outros cinco juizes deste caso. Varela e Marchena distinguiram-se na perseguição furiosa e comentários depreciativos sobre o juiz.

O juiz que ousou perseguir Pinochet

Garzón, tão admirado quanto odiado, popularizou a luta global contra o genocídio e os crimes contra a Humanidade. São tantos os que o admiram como os que o odeiam. Desperta tanto entusiasmo como suspeitas. Vaidoso, trabalhador infatigável, consciencioso, tenaz até à teimosia, Baltasar Garzón não é apenas o juiz mais famoso da história espanhola recente, mas também uma das personalidades do país vizinho com maior reconhecimento internacional.

A sua ideia da justiça universal, a luta convicta contra o genocídio e os crimes contra a Humanidade levaram-no a perseguir desde as ditaduras latino-americanas ao próprio Osama bin Laden. Atormentado pela convicção de que a sua carreira de juiz em Espanha terminou (está suspenso desde 2010) e de que o tribunal que o julga encontrará maneira de o condenar, Garzón orienta a sua atividade para o exterior: é conselheiro externo de Luis Moreno Ocampo, procurador do Tribunal Penal Internacional de Haia, consultor do Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa e conselheiro da Organização dos Estados Americanos para o processo de paz na Colômbia.

Os caminhos do adolescente Garzón na sua Jaén natal não apontavam para o mundo das leis, mas para o eclesiástico: estudou em dois seminários, até que, para desgosto da sua modesta família, liderada pelo pai, funcionário de um posto de gasolina, decidiu entrar para a Universidade. Inclinou-se para o Direito depois de ter contemplado a Medicina. Em 1981, com 26 anos, já era juiz numa cidade importante da província de Huelva. Passados sete anos, dava o grande salto, tornando-se titular da 5ª vara da Audiência Nacional (AN), um tribunal especial dedicado a combater o terrorismo, o narcotráfico e a corrupção.

Ali recorreu sem descanso à sua potente artilharia legal, embora os inimigos o acusem de ser mau instrutor, de terminar processos sem solidez argumental e de cuidar melhor do impacto externo das suas decisões do que de cimentá-las tecnicamente. Foi na AN que se manteve ao longo de toda a sua vida profissional, exceto em duas interrupções controversas. Em 1993, pediu licença para dar o salto para a política, convencido pelo Partido Socialista Operário Espanhol. Novato, empolgado pela campanha, chegou a número dois na lista de deputados por Madrid, atrás do próprio Felipe González. O romance com os socialistas foi curto: renunciou em maio de 1994, diz-se que despeitado por não ter sido ministro (foi secretário de Estado da luta contra as drogas).

De regresso à AN, foi buscar aos arquivos o processo dos Grupos Antiterroristas de Libertação (GAL), um caso de terrorismo de Estado contra a ETA, perpetrado a partir de gabinetes recônditos, que conduziu à prisão o ministro do Interior, José Barrionuevo, e do seu vice, Rafael Vera. Garzón voltou a afastar-se da AN em 2005, chamado pela Universidade de Nova Iorque para conduzir um curso sobre terrorismo. O financiamento desses cursos pelo Banco Santander, entre outros, e a coincidência de Garzón ter retirado, mais tarde, uma queixa contra o presidente desta entidade, Emilio Botín, custaram-lhe a abertura do último dos três processos pelos quais está a ser julgado no Supremo Tribunal (ver acima).

As causas do juiz-estrela

Garzón tornou-se famoso pelas operações ‘Nécora’ (1990) e ‘Pitón’ (1991), contra o tráfico de drogas, sobretudo na Galiza. Dirigidas pelo próprio a partir de um helicóptero, desmantelaram as maiores redes espanholas de comércio de cocaína.

Destacou-se na luta contra a ETA, sem dúvida marcado pelo assassínio da sua amiga, a promotora Carmen Tagle, às mãos do grupo terrorista. Foi o primeiro juiz a deslocar-se a França para interrogar líderes da ETA presos no país vizinho; deteve comandos armados e perseguiu as estruturas de apoio ao bando: fechou o jornal “Egin” e a sua rádio; ilegalizou o Herri Batasuna (braço político) e prendeu os seus dirigentes; desarticulou a rede financeira da ETA.

Atreveu-se, também, a perseguir os grupos financeiros mais importantes, incluindo o Banco Bilbao Vizcaya, cujos executivos denunciou por ocultação de contas em paraísos fiscais e por se autoatribuírem pensões à custa dos acionistas. O que deu notoriedade internacional a Garzón foi a ordem de deter em Londres, em outubro de 1998, o ditador chileno Augusto Pinochet, dando esperança a milhares de vítimas das tiranias de todo o mundo. Instaurou processos contra as ditaduras argentina e uruguaia, expôs a ‘Operação Condor’ (que coordenava com a CIA a repressão uruguaia, chilena e argentina à “subversão” das esquerdas) e conseguiu extraditar para Espanha torcionários como Ricardo Domingo Cavallo, que aplicava técnicas abomináveis na sinistra Escola de Mecânica Naval, de Buenos Aires. Em 2002, personalidades e organizações promoveram a sua candidatura ao Prémio Nobel da Paz.

Angel Luís de la Calle (correspondente em Madrid - Expresso) | 21-01-2012

Comentários (15)


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NOJENTO!

O Juiz que investiga eficazmente FASCISTAS, CORRUPTOS, MAFIOSOS E TERRORISTAS é que é o criminoso. Força, colega Garzón. Dê cabo de todos esses piolhosos!!!

Também em Espanha a Constituição só serve para defender a ESCUMALHA. Deve ser maldição ibérica...
Zeka Bumba , 21 Janeiro 2012
...
Parece-me um texto muito parcial e defensor da impunidade das acções dos Juízes.E se de facto tiver havido abuso do Juiz Garzón?
Bengal , 21 Janeiro 2012
Sir
Este Senhor precisa da magistratura para alguma coisa?...

Serviu!
Serviu causas...
Tão somente o que importa...
Trevas , 21 Janeiro 2012
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Garzón exorbitou, manifestamente, as suas funções quando quis abrir processos crime contra pessoas que ele sabia (não podia deixar de saber) serem já falecidas. Com a abertura de tais processos prosseguia finalidades políticas - o ajuste de contas com o franquismo. Está agora a provar o seu próprio veneno. Apesar do despropósito daquela atuação a verdade é que a mesma não constitui crime. É, apenas, mau uso do direito, com repercussão apenas no mérito (na falta de mérito) do juiz em causa. O problema é que em Espanha há ainda muitos franquistas que estão doidinhos por «lhe fazer a folha». Vamos ver quem triunfa: o Estado de Direito ou os fascitas (e o Supremo está cheio deles).
Priolo , 22 Janeiro 2012
...
Juízes armados em justiceiros é a pior coisa que pode suceder a qualquer sistema de justiça. BG claramente usou o cargo para fins que extravazam a função judicial. Usou-o para activismo político. Isso é feio e deve responder pelo facto.
Catarina , 22 Janeiro 2012
"Abusios"
De repente eis que tantos comentadores desatam a a acenar com o papão do fascismo. Até parece que alguém quer voltar aos julgamentos populares do PREC.
Atecomemcriancinhas , 22 Janeiro 2012
Expliquem-me isto...
... por favor:
- A acusação pública não vê crime na conduta do juiz.
- O Supremo Tribunal acusa Garzón ...
Está tudo grosso?
Em Espanha também?
A.M. , 22 Janeiro 2012
...
Zeka Zumba

Toda a gente apoia e aplaude os que se insurgem contra os crimes (putativos e efectivos) do fascismo.
No entanto quando falamos dos crimes do comunismo o silêncio é insurdecedor... Porquê?
Alguém , 22 Janeiro 2012
...
Caro Alguém,

Houve crimes "comunistas" em Espanha???? (daí não perceber a sua observação).

No entanto, para que fique claro, TAMBÉM OS CRIMES DOS REGIMES COMUNISTAS NÃO DEVIAM FICAR IMPUNES (E, SE FICAREM - COMO TERÃO FICADO - ESTÁ MAL).


Estaline, Lenine (pelo menos por ter mandado assassinar a família imperial, incluindo CRIANÇAS), Pol Pot, Mao Tse Tung, Gomulka, Rakozy, Idri Amin, J Eduardo dos Santos, Fidel Castro, Jaruzelski, Ceausescu são tão criminosos como Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Pinochet, Videla ou Perón.
Zeka Bumba , 23 Janeiro 2012
UM JUIZ "MODELAR"
Em Espanha, as coisas não vão melhor do que aqui. Se a administração da Justiça não for excepção, Baltasar Garzón tem fortes probabilidades de acabar absolvido de todas as acusações, menos de uma:

1-Do alegado crime de prevaricação, se os tribunais espanhóis funcionarem como os nossos, certo que há-de sair limpo porque se concluirá que agiu sem consciência de que decidiu contra legem;

2-O mesmo se diga dos processos que lhe foram movidos pela Falange Española e por Manos Limpias.

3-A única acusação de risco é a de ter recebido dinheiro em Nova Iorque, caso que vai depender do peso financeiro de quem estiver metido nesse circuito.

A seu favor estarão as atenuantes de ser um valoroso "campeão" dos direitos humanos. Só foi pena que não tivesse levado esse zelo "justiceiro" até Fidel de Castro. Mas ele é sobretudo uma pessoa modesta e não terá querido tantos louros!
Joaquim Maria Cymbron , 23 Janeiro 2012 | url
...
Alguém:
Não deve´ter tempo para ver TV ou acompanhar os meios de comunicação!
Queraio de "silêncio ensurdecedor" é esse quando os crimes de Stalin, de Mao, de Pol Pot, de Castro , de Hosxa e da restante camaradagem estão quase diariamente nas Tv´s?
Compre o Meo homem! Ou uma parabólica com canais gratuitos (passe a publicidade)
Pedro Só , 23 Janeiro 2012 | url
...
Cá anda a Xô D. Catarina preocupada com os juízes justiceiros. Nunca a vi foi preocupada com os advogados trafulhas... É curioso...
Zeka Bumba , 23 Janeiro 2012
...
Lendo o post do comentador Cymbron, devo realçar que essa entidade de dignidade acima da média chamada Falange Española merece inteiramente que se lhe reconheça dignidade suficiente para "litigar" como queixosa num processo penal (já, do outro lado da "barricada", com certeza!).
Zeka Bumba , 23 Janeiro 2012
...
Pedro Só,

Deve ser por isso que só se ouve os "caramelos" do PCP e do BE a chamarem de fascistas a torto e a direito...
O curioso é que os do extremo oposto não merecem a mesma atenção...
Chamam-lhe Democracia (de Esquerda e para a Esquerda)!
Alguém , 24 Janeiro 2012
JUIZ?
1 - Só agora vi o comentário de Zeka Bumba ao que escrevi sobre Baltasar Garzón.

2 - Zeka Bumba tem-se apresentado como Juiz de Direito.

3 - Não cuido do mérito ou demérito do conteúdo do seu comentário.

4 - Limito-me a dizer (eu, que tão crítico sou dos maus magistrados), fico-me, dizia, por deixar aqui exarado o seguinte:

5 - Não compreendo, nem me parece que algum dia venha a compreender, como é possível um Juiz de Direito descer à praça pública a discutir seja o que for.

6 - Um Juiz de Direito, como eu o vejo, é titular de um órgão do poder político, precisamente aquele que constitui a jóia da soberania, tão estimado que os próprios Reis nunca abriram mão dele, por completo, reservando sempre para si o direito de clemência.

7 - Entrando em debates com o vulgo, o mínimo que lhe pode acontecer é vulgarizar-se.

8 - Mas os juízes, como homens que são, não têm direitos iguais aos demais cidadãos?

9 - Na pureza do seu enunciado abstracto, é evidente que sim, mas alguns desses direitos só os podem gozar com muita prudência.

10 - Quem, um dia, voluntariamente escolheu a grandeza desta profissão (que, a ser exercida com nobreza, é uma das mais duras servidões a que um ser humano se pode sujeitar) também livremente renunciou a alguns direitos, pelo menos, na sua total extensão.

11 - O Juiz de Direito é o sacerdote que perscruta os arcanos da lei e profere o respectivo oráculo.

12 - Se deixa de aparecer como uma figura hierática, perde prestígio e, sem ele, esfuma-se o seu poder.

13 - Talvez por pensar assim, sejam frequentes e acesas as minhas fricções com certos magistrados.

14 - E certamente por isto, digo ao meu opositor que pode acumular os comentários que quiser que nenhuma resposta minha há-de receber.

15 - Ele ou qualquer outro Juiz de Direito!
Joaquim Maria Cymbron , 09 Fevereiro 2012 | url

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