Elisabete Miranda - «Eu não sei se o OE é inconstitucional. Mas sei que perante tantas e tão fundadas dúvidas sobre a sua legalidade, os órgãos de soberania têm o dever de se empenhar na sua clarificação. Seja para concluir que a Constituição não passa de um floreado anacrónico ou que o Governo, estribado na troika, está a ser o seu coveiro ilegítimo (...)».
Nas últimas semanas, Presidente e partidos de esquerda transformaram aquilo que devia ser um acto normal da vida democrática – o envio de um Orçamento do Estado (OE) de uma violência inédita para o crivo do Constitucional – num folhetim político desprestigiante e penoso de assistir.
Cavaco Silva acha que os cortes nos salários à Função Pública e pensionistas são inconstitucionais, mas lava daí as suas mãos – para o Presidente, o seu dever de fiscalização da legalidade estará cumprido com uma mera denúncia verbal.
No PS, deputados como Vitalino Canas apoiaram a viabilização do OE, mas, depois do documento aprovado, tiveram um rebate de consciência legal. O PCP e o BE, mais preocupados com a contabilidade das derrotas constitucionais do que com a validação de princípios basilares do Estado de direito, exigem ser cortejados pelos socialistas mais perseverantes (e coerentes) para se mobilizarem para o pedido de fiscalização sucessiva do documento.
Seja por cálculo político, tibieza ou resignação, poucos ficam bem nesta fotografia. Até mais ver, cabe ao Tribunal Constitucional validar, em cada momento, os equilíbrios de poder que regem a realidade social. E este OE traz consigo decisões que podem pôr em causa direitos fundamentais de forma bem mais gravosa do que o documento anterior, que foi validado pelos juízes.
Os cortes de 2011 foram aceites porque o mínimo salarial que garante a subsistência dos visados não era beliscado com uma redução média de 5%: agora estamos perante tesouradas mais draconianas para remunerações acima de 600 euros.
O princípio do não retrocesso social, que se considerou não ter sido posto em causa pelo facto de os cortes de 2011 serem temporários, está agora mais ameaçado com a intenção do Governo em rever as tabelas salariais após 2013, e assim alcançar uma redução permanente da despesa salarial. E o argumento da quebra de confiança não foi testado no caso das pensões.
Eu não sei se o OE é inconstitucional. Mas sei que perante tantas e tão fundadas dúvidas sobre a sua legalidade, os órgãos de soberania têm o dever de se empenhar na sua clarificação. Seja para concluir que a Constituição não passa de um floreado anacrónico ou que o Governo, estribado na troika, está a ser o seu coveiro ilegítimo. Seja para validar as medidas aprovadas, ou para obrigar a sociedade e envolver-se em mais uma discussão sobre formas justas e equilibradas de repartir os custos do empréstimo externo que o País se viu obrigado a pedir.
Ter medo da Constituição é menorizar as instituições e infantilizar os cidadãos. É admitir, perante os portugueses, que os apelos à coesão social e à renovação do contrato social não passam de chavões para en- . galanar discursos de circunstância.
Elisabete Miranda (Jornalista) | Jornal de Negócios | 13-01-2012
Comentários (4)
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Quem tem medo da democracia?
Qual Constituição qual carapuça!
Se fossemos uma democracia alguem se atreveria a sugerir sequer que quem tiver mais de 70 anos se precisar de hemodiálise terá de a pagar, sendo certo que não a fazendo está condenado à morte dentro de dias e que o Estado se descartou desse serviço entregando-o a privados, em esmagadora maioria, logo fazendo dessa imperiosa necessidade um nagócio de alguns?
Se fossemos um Estado de direito alguem se atreveria a dizer que os funcionários do Banco de Portugal não verão amputados dois meses de ordenado porque esta instituição pública não depende das dotações do OE e está obrigada a cumprir o contrato colectivo que rege as respectivas relações de trabalho? E a função pública não tinha uma regulamentação colectiva de grau superior, a lei, incluindo a CRP? Esta regulamentação legal pode ser derrogada e uma regulamentação contractual não? Se os nossos governantes e organizações de onde provêm tivessem um míni9mo de dignidade (PS, PSD e CDS) iriam pedir por favor, implorar ao BP que corte os dois meses de ordenado aos seus trabalhadores por solidariedade com os funcionários públicos mesmo que a isso não sejam obrigados? Mas isto é próprio de quem tem dois dedos de testa e um mínimo de dignidade? É desta gente que vamos escolher os governentes de amanhã? Provavelmente alguém o fará mas uma coisa é certa: cavaremos mais funda a cova onde vamos enterrar o nosso País.