Correia de Campos - Os portugueses tinham, entre outras, cinco grandes qualidades: a inveja, o disfarce, a acomodação, a rusticidade e a subsídio-dependência. Nos últimos tempos podemos acrescentar mais uma: a justiça de sofá. Estávamos já bem servidos de atributos quando surge um novo: a capacidade de se "fazer justiça" pela televisão.
A inveja é um dos grandes atributos da alma lusa. Move montanhas e constitui a nossa via original para a transparência. Todos conhecemos a inveja, última palavra de Os Lusíadas, uma estrofe anódina que ninguém esperaria como fecho da nossa maior obra épica. Todavia, sem a inveja, nunca os filhos segundos que militaram nas descobertas, conquistas e colónias poderiam aspirar a possuir terra, nem os clérigos sem família a dizer missa em novas dioceses, nem os escrivães, juízes e tabeliães a escreverem a história do quotidiano.
Mas a inveja tem hoje outra função, mais nobre: ela é a estrada da transparência. Sem ela não se conheceriam as remunerações dos administradores de bancos e grandes empresas, dos pluripensionistas do Estado, nem dos deputados ao Parlamento Europeu. Nada melhor do que uma crise para que todos, militantemente, desejem saber o que os outros recebem, transformando-se em eficazes agentes do fisco.
O disfarce é a face lúdica dos portugueses. O Carnaval está-nos na alma. E quando alguém pensa em apagá-lo, protestamos de forma cínica: "Ai não queres dar a tolerância, então meto um dia de férias"! O disfarce também se apresenta disfarçado. Soubemos agora que o gestor de uma empresa pública aguentou nove anos a injúria de sucessivos Governos não terem aceite as suas soluções salvadoras para as finanças da empresa. Não sabemos que mais admirar, se a resistência do gestor perante a recusa das suas ideias, se a tolerância dos Governos perante tão incómodo gestor público.
A acomodação é uma arte centenária. Chama-se manha, quando ocorre nos fracos, e ajustamento de atitudes, nos fortes. A acomodação está na história. Nos visigodos como servos dos árabes, nos árabes como servos dos reconquistadores, nos portugueses disfarçados de súbditos sob Leonor Teles, nos derrotados de Alcácer- Quibir, tolerando os Filipes com a desculpa do direito dinástico, sob o Marquês, disfarçando o medo com a simpatia pelo iluminismo, sob D. Miguel, disfarçando o constitucionalismo com a obediência à igreja, sob João Franco, disfarçando o republicanismo com a veste do progressismo, sob Sidónio, disfarçando o afonsismo com a veste do anticlericalismo, sob Salazar disfarçando a fúria impotente com a veste do reviralhismo inofensivo. A acomodação é uma forma de vida, os escrúpulos cedem com a generalização da prática, tudo se aceitando sem necessária militância. A acomodação tem enormes vantagens: dura décadas e não magoa ninguém, a não ser a consciência dos acomodados.
A rusticidade foi o segredo das nossas vitórias de séculos. Inata nos povos deste Ocidente europeu. Atarracados, agarrados ao terrunho, frugais, resistentes ao frio e ao calor, verdadeiros rústicos, lutámos com ganas e sem hesitar na Flandres, nas colónias ou nos novos cenários da moderna guerra europeia. Emigramos para qualquer parte do mundo sem conhecermos línguas, ajeitando-nos depressa aos costumes locais. Aguentamos a cidade, a periferia o bidonville e o mato. Temos uma imensa vocação de emigrante, mesmo que nos reservem a sorte do Senhor Ventura, do Torga, duas vezes rico, duas vezes pobre, até regressar à aldeia natal. E lá voltamos a ela, de novo.
Finalmente, a subsídio-dependência, uma profissão recente, tão recente quanto os subsídios. Para tudo se precisa de apoio do Estado. Para iniciar ou encerrar actividade, para modernizar e inovar, para aprender, treinar e experimentar, para mudar de ramo, de modelo, de tecnologia, de fonte de produção e de produto. Para começar a produzir e para deixar de produzir. O subsidiozinho é essencial. E é altamente contagioso. Dois dias depois da privatização da EDP, os compradores esperam que o Governo continue a apoiar as renováveis.
Estávamos já bem servidos de atributos quando surge um novo: a capacidade de se "fazer justiça" pela televisão. É fácil, rápido, seguro e eficaz. Não necessitamos de sair de casa, o tribunal chega-nos ao sofá. É rápido, pois só somos citados no dia do julgamento. É seguro, por não arriscarmos incómodos, qualquer que seja o resultado do tribunal. E é tremendamente eficaz, pois condenamos onde o tribunal absolveu e absolvemos onde o tribunal condenou. Tem ainda a vantagem de se assistir em directo à execução da sentença. O réu pode ter sido mandado em paz, mas se o Povo o condenou, terá que sair sob escolta policial e pela porta das traseiras. Até pode ser condenado em tribunal por "crime" cometido em dia diferente do da acusação, como na fábula do lobo e do cordeiro. Com tamanhas qualidades, bem podíamos dispensar a troika.
António Correia de Campos ( Deputado do PS ao Parlamento Europeu) | Público | 27-02-2012
Comentários (17)
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E depois, como a barca da governação é a única que "mete água pelo topo", Portugal foi ao fundo. Menos o inenarrável, que elegantemente saltou para um salva-vidas que discretamente foi preparando ali mesmo ao lado, e velejou para Paris.
Mas não faz mal: o português médio, invejoso, disfarçado, acomodado, rústico, subsídio-dependente e voyeur, que teve de vender a casa e o carro porque não tem formas de os pagar e que não sabe como sustentar os filhos porque ficou desempregado, pode sempre consolar-se com a vida Parisiense faustosa do seu amado mentor, e pensar: se com ele resultou, pode ser que comigo também resulte.
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Infelizmente para o Povo Português este é o retrato que dele faz um ex-governante e um seu representante no Parlamento Europeu. Infelizmente para o Povo Português a desfaçatez e a chico-espertice da sua classe política parece não ter fim! Se calhar este "homenzinho" já assim pensava quando integrou funções de Estado, se calhar pensou que ia governar invejosos e rústicos, por isso não teve grandes pruridos em mal governar! Se calhar fazia-lhe falta alguma modéstia e respeito, ao menos pelos seus eleitores. Perante a mesquinhez e vilania de tal pensamento, só me espanta que este "homenzinho" não apresente de imediato a demissão do cargo que ocupa! Ou talvez o facto de lá permanecer até melhor o qualifique...
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Estou farto desta arrogância e superioridade tão típica deste PS, partido que se deixou enredar nas malhas do "filósofo" de Paris, nas loucuras do Vara e de muitos mais que por lá gravitaram.
Não é o António J. Seguro que vai mudar este PS, porque não tem capacidade para isso e o partido ficou todo minado pelas travessuras do chico esperto nº 1.
PRESUNÇÃO E ÁGUA BENTA
Este distinto Cavalheiro, que nós bem conhecemos de tempos ainda muito recentes e que, pelos vistos, tem tempo de sobra na função que ora exerce, lembrou-se agora de nos humilhar publicamente e a todos.
Não estaria melhor no Olimpo, a pregar aos deuses?!...
Aliás, presunção e água benta cada qual toma a que quer!
Entretenha-se, meu caro Sr., aí pelo Parlamento...
... E, por favor, deixe-nos em paz!!!
Melhor: Vá pregar o seu latim a outra freguesia!!!
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Caro Barracuda,
Quanto à nossa capacidade de resistência, digo-lhe que foi feroz com os lusitanos, digo-lhe que foi feroz contra os franceses e castelhanos, embora aqui ajudados pelo ingleses. Mas mais, resistir a trinta e tal anos de políticos sem qualquer sentido de Estado, ou princípios, é na verdade uma enorme capacidade de resistência!
Essa sua visão dos nossos emigrantes também não é correcta, se me permite! Actualmente são cada vez mais jovens qualificados que procuram destinos onde lhes seja garantida uma maior qualidade de vida, associada a direitos e melhores remunerações. Não é assim como diz!
Está revoltado? Também eu! Mas não se vire contra o Povo! Teremos os nossos defeitos, mas não nos minimize por favor! Podemos estar apenas a testar os limites da nossa resistência e, quando os atingirmos, não sei quem nos conseguirá aguentar!
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Provavelmente fala de Portugal por comhecimento e dos emigrantes por ouvir dizer. Eu falo do que conheço de ambos os lados. Do País de que me não excepciono e dos que fizeram e fazem a nossa emigração, por sinal ultimamente constituída em pequena percentagem por portugueses mais qualificados que os que inicialmente zarparam da Pátria Amada e madrasta. Os hoje melhor equipados intelectualmente, pelo menos nos centros de emigração europeus, não são nem querem ser emigrantes. Trata-se de fenómeno recente e veremos no que se transformarão com o passar dos anos se, como penso, não regressarem ao sítio de onde tiveram de sair. Se deixar o cantinho e vier à procura desses migrantes diplomados não os encontrará, vivem à parte, escondidos, à procura de mais um doutoramento, o que significva que em nada alteram o quadro geral que tracei. Para já, no trabalho, não se notam.Quanto a os portugueses terem no exterior como principais "inimigos" muitos dos seus compatriotas não há como experimentar. Saia e ntregue-se nas mãos do primeiro "protector" luso e verá de que é feito.
O autor do texto pode politicamente ser censurável e em meu entender é-o ele muitos outros. Se o meu entendimento de justiça valesse alguma coisa os nossos juízes teriam muitop trabalho durante alguns anis mas a nossa dignidade como povo sairia reforçada. Não me gabo de os ter suportado. Realmente tenho-os amaldiçoado todos os dias quando acordo e quando adormeço. Se dependesse de mim pagavam-nas com língua de palmo "custasse o que custasse". Nunca mais ninguem incompetente ousaraia brigar mandato no Estado com medo das consequências pelo mal que fizessem ao colectivo. Na política não há desculpas. Ningvuem é obrigado a brigar mandatos políticos e se não pagam pelo incumprimento é porque somos um povo que não vale nada políticamente, isto é, como colectivo. Se valessemos já os tínhamos comido vivos. Quanto ao fim da nossa paciência poderia esperar sentado mas não terei tempo para tanto. Eu não apouco o povo a que pertenço e dele não me excluo. Só que como em tudo na vida as minorias não contam para o resultado colectivo. Sofrem as ditaduras das maiorias, ora calados, ora protestando. Eu sou dos que não se conformam. Isto não significa que quem politicamente possa ser censurado não possa ter razão nas análises que faz seja do que for. Até do seu desempenho. Neste caso acho que o autor do texto acertou em cheio. Pode doer mas saba-se que são as verdades que mais doem.
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caro Barracuda,
Não desista, nem desespere, todos seremos poucos para lutar contra as adversidades.
Bem haja.