Alberto Costa - A Lei do Orçamento do Estado de 2012 instituiu uma dualidade em matéria de repartição de sacrifícios inaceitável num Estado de Direito fundado no princípio da igualdade perante os encargos públicos (Lastengleichheit, égalité devant les charges publiques). E pretendeu que essa dualidade durasse para além dele.
Para enfrentar o principal encargo público que impende sobre a comunidade - o défice a reduzir - introduziuse uma desigualdade de tratamento sem critério e sem justificação. Passam agora a existir duas categorias de cidadãos: numa ficam aqueles cujos rendimentos são atingidos através da "tabela de sacrifício" que opera pela via do direito fiscal; na outra ficam aqueles que, estando também sujeitos a essa, estão cumulativamente sujeitos a uma segunda "tabela de sacrifício".
Esta segunda categoria é constituída pelos pensionistas do sector privado e do sector público e pelos activos do sector público (com qualquer espécie de vínculo, incluindo o trabalho a termo e a mera prestação de serviços) que aufiram mais de 600 euros mensais. Passarão, além do sacrifício fiscal, a "sacrificar" também para o mesmo fim entre um sétimo e um 14 avos do montante anual da sua retribuição/pensão ("suspensão do pagamento dos subsídios de férias e do Natal" é o nome legal da perda definitiva desse valor).
Entendeu o Tribunal Constitucional em data recente que uma redução remuneratória de 5 a 10%, aplicável apenas a activos do sector público com remuneração mensal superior a 1500 euros, ainda se mantinha dentro de "limites de sacrifício" toleráveis. Apreciava a redução que foi adoptada na LOE 2011, com carácter anual - que é agora também mantida, e para o futuro, acrescentando-se às "tabelas de sacrifício" indicadas. Os factores que pesaram para a passagem no juízo de constitucionalidade foram a natureza orçamental ("caducidade no termo do ano"), os montantes em causa , o nível de retribuição a partir do qual ela actua e, muito em especial, a circunstância de só estarem em causa, alegadamente,"servidores públicos".
Haveria "um esforço adicional em benefício de todos, em prol da comunidade, que é pedido exclusivamente aos servidores públicos"."Vencendo por verbas públicas" e "vinculados como estão à prossecução do interesse público", seria justificável impor a essa "categoria de pessoas" o "sacrifício adicional" exigido, salvaguardadas que estavam no caso "limites de sacrifício"(Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 396/2011).
Este argumentário, que está longe de ser irrespondível, é inaplicável às inovações do OE 2012. Posições recentemente vindas a lume no sentido de que o Tribunal Constitucional "não deveria mudar de posição " revelam estar longe de aspectos decisivos.
Não é possível sustentar que o caso de uma redução, anualmente aprovada, de 5 a 10 %, a partir dos 1500 euros mensais, é igual ao caso dessa redução, por mais anos, acrescentada, por mais anos, de uma redução de mais 7 a 14%, a partir dos 600 euros mensais. Isto quando existiam alternativas comprovadas à via da intensificação do sacrifício e do agravamento da diferenciação.
E é muito claro que os pensionistas não integram o conjunto dos servidores públicos (ou dos "trabalhadores do sector público" em que a LOE 2012 erroneamente os inclui) - quer os que foram activos no sector privado, quer os que foram activos no sector público. Não "recebem vencimentos por verbas públicas". Com as suas próprias contribuições, e dos empregadores, adquiriram no passado um direito que, nas sociedades contemporâneas, a par da clássica propriedade, aparece para o maior número como a verdadeira garantia da autonomia individual. Daí que jurisprudências doutros países já tenham feito equivaler "redução de pensão" a "expropriação". As suas carreiras contributivas representaram, como se tem aí sustentado, um "investimento na confiança".
Uma coisa é reformar a Segurança Social, redefinindo regras - o que é sempre possível, respeitando princípios básicos. Outra coisa, que nada tem a ver com isso, é atingir os que já cumpriram a sua parte, reduzindolhes o montante anual das pensões a que, no momento próprio, ganharam direito, através das prestações efectuadas. Com estas medidas são atingidas expectativas básicas acerca da previsibilidade do Estado e da acção pública - expectativas estruturantes da vida e condicionantes da autonomia individual de muitos - com consequências mais vastas do que os valores financeiros envolvidos. Uma circunstância agrava o caso. O primeiro-ministro emergente do partido eleitoralmente triunfante tinha assegurado, já em plena crise e em face das anteriores "reduções remuneratórias", que com ele não haveria "cortes salariais ou das pensões" e que o corte do 13.º mês era mesmo "um disparate". Esta seria uma página sem remédio numa antologia da descredibilização do Estado, se a outros não estivesse agora conferido o dever de garantir, para lá da conformidade aos princípios constitucionais, a fidelidade do Estado de Direito democrático à sua promessa de protecção da confiança.
Quando se trata da economia e dos mercados, ainda por cima num situação crítica, as questões relacionadas com as expectativas e a confiança são levadas muito, muito a sério. Não pode ser diferente quanto se trata das pessoas.
Alberto Costa, Advogado, deputado do PS, ex-ministro da Administração Interna
Público | 03-02-2012
Comentários (10)
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LIRISMO
Pois não sabe ele, acaso, que a "redução" da pensão dos servidores do Estado na situação de aposentação, não é, a nenhuma luz, uma simples "expropriação"?
Trata-se, senhor Doutor, de um autêntico "confisco".
O resto, meu caro Senhor, são tretas!...
Quanto aos Venerandos Senhores do Tribunal Constitucional, não são eles que têm, nomeadamente, automóvel do Estado ao seu serviço e motorista privativo?...
São, com todo o respeito, uns autênticos Príncipes!...
José Pedro Faria (Jurista) - Ousadia
Alberto Costa tem razão no que escreve (ainda que não diga qualquer novidade); mas o problema não residirá aí.
Por exemplo: toda a gente se lembra que Passos Coelho afirmou que com ele não haveria "cortes salariais ou das pensões" e que o corte do 13.º mês era "um disparate". Passos Coelho, lamentavelmente, faltou (deliberadamente) à palavra dada, já que não pode alegar agora que "desconhecia" que a situação era tão má.
Mas o problema é que aquilo que Passos fez é o que os políticos dos partidos que têm estado no Poder têm feito continuadamente, incluindo o partido a que Alberto Costa pertence. Aplica-se aqui o velho ditado português, "diz o roto ao nu: porque não te vestes tu?".
Tem o articulista razão quando escreve: "Quando se trata da economia e dos mercados, ainda por cima num situação crítica, as questões relacionadas com as expectativas e a confiança são levadas muito, muito a sério. Não pode ser diferente quanto se trata das pessoas". Contudo, vindo de quem vem... enfim, digamos que é preciso ter alguma ousadia.
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Parte 1 - Algumas verdades, sim, mas algumas omissões
A)
«A Lei do Orçamento do Estado de 2012 instituiu uma dualidade em matéria de repartição de sacrifícios inaceitável num Estado de Direito fundado no princípio da igualdade perante os encargos públicos.»
Interpreto o Direito segundo uma visão objectivista e actualista. Pode Passos Coelho e o seu Governo berrar que sacrifica isto e aquilo em nome do equilíbrio das contas públicas ou em nome de Apolo, que eu verei nesse "sacrifício" (1) a mera actualização de salários inflacionados que a Economia pátria já não comporta. (É mera perspectiva Medina Carreira.)
Como estão, também, inflacionados muitos salários no sector privado - o que, aliás, e como é bem sabido, tem o perverso efeito de levar tanta empresa a contratar a termo ou a recibos verdes. É que com tanta gente com "direitos adquiridos" nas prateleiras, os novos (novos no sentido de chegados ao mercado de trabalho, não necessariamente na idade) não adquirem direitos nenhuns. Esta gritante injustiça, esta ruptura gravíssima inter-geracional, a uns nada diz. Os putos que emigrem, dizem outros! Até uma vaca parideira quer mais bem às suas crias do que muitos portugueses querem aos seus filhos e netos.
Mais tarde ou mais cedo os cortes feitos no sector público aparecerão no sector privado. É imperativo que assim aconteça, mesmo que há 6 meses tal necessidade não me passasse pela cabeça com muita intensidade. (Já vos disse para ouvirem o Medina Carreira às 2.as-feiras?)
E não é pelo argumento da igualdade entre funcionário públicos (aqui, no sentido tradicional: funcionários com vínculo sem termo; portanto, excluindo quaisquer outros (2)) e trabalhadores privados que defendo alterações no contrato de trabalho privado para que se possa baixar salários a partir de certo valor (valor elevado, por uma questão de justiça social).
É que não há igualdade possível entre quem trabalha numa empresa (o Estado) que não abre falência, e quem trabalha numa que pode abrir.
Conto-vos uma história que demonstra como o funcionário público não é igual ao privado:
Da minha experiência profissional já conto com ter trabalhado numa empresa que o Estado decidiu encerrar; não fui "realocado" (como agora é chique dizer) pelo Estado. No entanto, se o Estado, por qualquer razão, desmantelar completamente um seu departamento (extinguindo tribunais, por ex., ou faculdades públicas, ou fechando centros de saúde) ninguém vai para a rua: antes é colocado noutro serviço. Pode ser uma má experiência, mas certamente é melhor do que ir para o olho da rua.
O pior que até hoje podia acontecer a um funcionário público com contrato sem termo era ver o seu ordenado congelado ou sujeito a cortes (Ferreira Leite, Teixeira dos Santos, e agora Vítor Gaspar).
O pior que pode acontecer a um trabalhador privado é a empresa onde trabalha falir e perder todo o seu sustento periódico, tendo de procurar outro.
Parte 2 - Algumas verdades, sim, mas algumas omissões
Se isto não é uma diferença significativa, então bolas!
Creio que cada pessoa escolhe o que pensa ser melhor para si.
Cada um que pense que carreira gostaria de ter e decida se trabalhar no público ou no privado é mesmo assim tão igual que não justifique a uns sacrifícios diferentes dos exigidos a outros (não nego porém que o grosso dos sacrifícios tem de ser igual).
(1) Sobre os "sacrifícios" (que, para alguns, a concretizar-se o plano do Governo, serão mesmo um inferno) já disse e repito: os cortes anunciados pelo Governo pecam - inconstitucionalmente, a meu ver - por atacar salários demasiado baixos. Em compensação - o que irritará muitos - salários e pensões milionárias, bem... até o 10º mês deveriam ver suprimidos! Já falei aqui dos 7000 euros da Sra. Assunção Esteves, depois de uma dúzia de anos a trabalhar no TConstitucional? Quem não se escandaliza com estes casos nasceu em estranho berço...
(2) A inclusão de funcionários com contrato a termo e meros prestadores de serviços nos ditos cortes brada aos Céus. Entendo que deve haver cortes, quer no sector público quer no privado, mas no público os cortes terão de levar em conta essa grande segurança - nomeadamente psicológica, tão subestimada - de saber que nunca por falência do empregador (Estado) o funcionário público com contrato sem termo irá para o olho da rua. Ora quando essa segurança não existe (como de facto não existe nos casos referidos de contratos a termo e meros prestadores de serviço) o corte não faz sentido, ainda que a pessoa "trabalhe" para o Estado. Em meu entender, os cortes, em si abstractamente considerados, são um imperativo, devido ao estado da economia (recessiva); já o quantum dos cortes avalia-se pela situação, mais ou menos favorável, em que a pessoa se encontra. E ter segurança na manutenção do contrato de trabalho é viver uma situação bastante favorável, ainda que aqueles que a vivam achem que ninguém lhes faz favor nenhum por terem essa vantagem de que outros não gozam. Mas, insisto, é iníquo pedir a um trabalhador privado e a um público (hoc sensu, com contrato sem termo) o mesmo exacto sacrifício, quando a segurança no trabalho de ambos são realidades tão diferentes. (Repito no entanto que o grosso do sacrifício deve ser o mesmo.)
Parte 3 - Algumas verdades, sim, mas algumas omissões
B)
«Com as suas próprias contribuições, e dos empregadores, [os pensionistas em geral] adquiriram no passado um direito que, nas sociedades contemporâneas, a par da clássica propriedade, aparece para o maior número como a verdadeira garantia da autonomia individual. Daí que jurisprudências doutros países já tenham feito equivaler "redução de pensão" a "expropriação". As suas carreiras contributivas representaram, como se tem aí sustentado, um "investimento na confiança".»
Caro Alberto Costa, cada carreira contributiva de cada cidadão é quase um caso. Então no tempo em que havia Caixas de Previdência para isto e Caixas de Previdência para aqueloutro...
Como sabe, há muitos servidores do Estado que em 15 anos de reformas vão ganhar mais do que descontaram em 30 de trabalho. Não me puxe pela língua porque na minha família há um caso assim.
Não seja ingénuo (ou falso): a economia não aguenta estes casos. Muito menos uma economia em recessão.
Já quanto aos pensionistas do sector privado, de cujas organizações se têm ouvido vozes ferozes (cuja coerência me parece ser muito sólida) contra estes cortes, não conheço casos escandalosos de "descontei pouco e estou a receber muito!" Mas também não me espantaria que existissem. Não preciso de lhe explicar a engenharia financeira que o permitiria, pois não? Ou acha que o Direito português é tão perfeito que reconhece todos os esquemas Ponzi que por aí andam?